Autopédia Tecnologia FIRE. O supermotor da FIAT que todos deviam idolatrar

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Tecnologia FIRE. O supermotor da FIAT que todos deviam idolatrar

Na década de 80, a FIAT uniu esforços com a PSA Peugeot Citroën, para produzir um «supermotor» revolucionário: o FIRE.

FIRE MOTOR

A história da indústria automóvel está repleta de «heróis» esquecidos. É normal que assim seja. Usualmente são apenas as mecânicas mais nobres, com os números mais avassaladores que chegam ao «Olimpo dos Motores».

Não é justo. Hoje queremos contrariar essa regra. Este artigo da Autopédia Razão Automóvel é inteiramente dedicado a um pequeno «super motor» — ou se preferirem, a uma dinastia de motores que reinou durante décadas.

Falamos naturalmente dos motores FIRE da FIAT.

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Lancia Y10
Há quem defenda que estes motores não são 100% FIAT e têm uma «costela francesa». Mas já lá vamos…

Neste artigo vamos explicar porque é que este motor nascido na década de 80 — e cuja produção durou mais de 30 anos — merece ser distinguido como um dos melhores de sempre.

Uma viagem ao passado, precisamente na semana em que as entidades europeias decidiram decretar a morte dos motores de combustão. Da nossa parte… viva os motores de combustão.

Motor FIRE. Uma ambição desmedida

Foi em março de 1985 que o motor FIRE viu pela primeira vez a luz do dia, após quase cinco anos de desenvolvimento intenso e ininterrupto em Mirafiori (Turim).

O modelo escolhido para a estreia desta motorização foi o Lancia Y10.

Lancia Y10
Naquela época, cabia normalmente à Lancia as «honras» de estreia das melhores tecnologias do Grupo Fiat. Em mercados como Portugal, antes de ser Lancia, o Y10 era vendido como Autobianchi — já repararam no logótipo na frente?

À época, o caderno de encargos para este motor era exigente — para não dizer absurdamente ambicioso.

Tinha que ser tão ou mais fiável que o motor que vinha substituir (o FIAT 903), tinha de consumir menos, andar mais e durar pelo menos 30 anos — sim, em tempos os motores eram projetados para durar «uma vida».

Mas o caderno de encargos não ficava por aqui. Além destas características, este motor devia ser mais barato e mais rápido de produzir.

Como se não bastasse, a administração da FIAT decidiu acrescentar mais uma camada de dificuldade: os engenheiros da marca tinham de conseguir tudo isto sem prejudicar a qualidade final do produto.

Mais adiante veremos como é que os engenheiros da FIAT alcançaram este objetivo.

Um sucesso contagiante

Escusado será dizer que os italianos, contra todas as expectativas, tiveram sucesso nesta empreitada — caso contrário não estávamos neste momento a ler este artigo da nossa Autopédia. Por isso, depois do pequeno Lancia Y10, o motor FIRE surgiu também no Fiat Uno.

O contágio aos produtos do Grupo Fiat nunca mais parou: Panda, Tipo, Punto, etc — atirem nomes para cima da mesa. Encontrávamos os motores FIRE em praticamente todos os produtos da FIAT.

Fiat Uno
Basicamente, a partir de 1986, todos os veículos de passageiros da FIAT tinham debaixo do capot um motor FIRE.

De um momento para outro, esta família de motores passou a ser um dos pilares fundamentais das marcas do Grupo FIAT. Em bom português eram «pau para toda a obra».

Mas mais interessante do que falar no sucesso final — que todos conhecem — vale a pena recordar os capítulos intermédios desta história, que deixou toda a concorrência a fazer «contas à vida».

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Tecnologia de ponta ao serviço da FIAT

A sigla FIRE, apesar de simples, significa algo verdadeiramente inovador: Fully Integrated Robotized Engine.

Pela primeira vez, na história da engenharia automóvel, um motor era maioritariamente desenvolvido em ambiente digital, com recurso a programas informáticos de design de elementos finitos.

Motor FIRE
Nada foi deixado ao acaso. O empenho da FIAT nos motores FIRE foi tão grande que até o departamento de design foi chamado para ajudar no aspeto final do motor.

Graças a estes programas de design de elementos finitos — que permitiam simular o esforço e a resistência dos materiais — os engenheiros da FIAT podiam agora ir mais longe que nunca no que diz respeito ao desenvolvimento dos componentes mecânicos.

O primeiro motor da família FIRE tinha um litro de capacidade e quatro cilindros em linha.

Foram os resultados conseguidos através da simulação computacional que permitiram aos engenheiros desenhar um bloco cuja espessura das paredes era de apenas 4 mm.

Motor FIRE
Imagem exemplificativa do motor FIRE Mille em ambiente digital.

Estas decisão teve repercussões importantes no produto final. Embora o bloco fosse produzido em ferro fundido, o peso total era de apenas 18 kg. Totalmente funcional, este motor pesava somente 69 kg. À época, apenas a Suzuki conseguia bater este valor, com um bloco de três cilindros que pesava 63 kg.

Além de leve, este motor FIRE também era menos complexo. Era composto por apenas 273 componentes, o que reforçava em grande medida a sua fiabilidade mecânica.

Motor FIRE
Motor FIRE Mille. Uma imagem de corte onde podemos apreciar a simplicidade mecânica da primeira geração de motores FIRE.

Na sua primeira aparição, os números de potência deste motor FIRE não eram extraordinários, pelo menos à primeira vista. Estamos a falar de uns parcos 45 cv de potência, precisamente a mesma potência do motor FIAT 903 que a marca pretendia substituir.

Porém, já durante a fase de desenvolvimento, a FIAT ambicionava mais e preparou este bloco para outros voos, como podem constatar nesta imagem.

Gráfico com curva de potência
Este gráfico produzido pelas análises experimentais realizadas na fase de projeto e teste do FIRE 1000 mostra algo muito interessante: às 5000 rpm o motor desenvolvia 45 cv, mas às 7700 rpm a potência podia ascender aos 80 cv. Esta configuração foi utilizada pelos técnicos da Fiat para garantir que no futuro haveria a possibilidade de produzir configurações mais potentes.

Na versão final de produção, a potência do motor podia não impressionar — é um facto. Mas o binário desenvolvido pelo motor FIRE Mille era muito superior ao do seu antecessor: 80,5 Nm contra 67 Nm.

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Mas não foi apenas no desenvolvimento do motor FIRE que os computadores tiveram um papel fundamental. A produção dos motores passou a ser maioritariamente controlada por computador, recorrendo a linhas de montagem robotizadas. Algo profundamente inovador na década de 80.

 

Depois do contributo de Henry Ford, este foi um dos maiores avanços na história da produção automóvel.

Daí em diante, nada mais foi como era. A utilização de robôs permitia uma produção mais rápida, mais fiável e mais barata.

Sequência de imagens da montagem da cabeça do motor FIRE da FIAT
Nesta imagem vemos uma sequência de montagem da cabeça do motor numa linha totalmente automatizada.

Graças a todos os avanços tecnológicos aplicados à produção, a FIAT conseguia produzir, a partir de um bloco de aço com apenas 43 kg, os seguintes componentes: bloco do motor, cambota, árvore de cames, bielas e válvulas.

Feitas as contas, com todos estes avanços tecnológicos, no auge da produção dos motores FIRE, a FIAT conseguia produzir 3000 unidades por dia — com turnos de 12 horas diárias.

Estamos a falar de um motor novo a cada 20 segundos.

Poderíamos ser levados a pensar que esta rapidez iria comprometer a qualidade final, mas a FIAT pensou nisso. Com recurso a tecnologia laser, passou a ser possível verificar com precisão todos os parâmetros de produção.

MOTOR FIRE
Em alguns dos estágios da produção, era possível verificar até 82 pontos de tolerância numa questão de segundos.
Estação de controlo ótico da câmara de combustão
Esta imagem mostra a estação de controle ótico da câmara de combustão. Uma máquina que utilizava um feixe laser de baixa potência para inspecionar automaticamente a condição das superfícies internas.
Fábrica de Termoli
A primeira fábrica a receber a tecnologia FIRE foi Termoli (Itália). Precisamente a fábrica agora escolhida por Carlos Tavares, CEO da Stellantis, para produzir as baterias para os 100% elétricos do grupo.

O resultado final deste investimento foi uma tecnologia revolucionária, que radicou no surgimento de um motor simples, barato, fiável e eficiente. Mas talvez mais importante: revolucionou a forma como os motores eram produzidos.

Podemos afirmar que hoje há um pouco de tecnologia FIRE em todos os motores que conhecemos.

Gastar muito para poupar ainda mais

Se houve campo onde a FIAT não poupou esforços foi no desenvolvimento da tecnologia FIRE — que como acabámos de ver, não se limitou aos motores e influenciou também a produção.

A FIAT testou todas as soluções desenvolvidas, num dos centros mais avançados da época: os Laboratórios Fiat Auto em Turim (Mirafiori).

TECNOLOGIA FIRE FIAT
Menos componentes, maior fiabilidade. Nesta imagem podemos ver como a bomba de óleo estava diretamente na dependência da cambota, abdicando de correias, correntes ou outros componentes.
MOTORES FIAT
Apesar do recurso a programas informáticos, os testes de resistência aos componentes em laboratório não foi esquecido.

O próprio coletor de admissão do FIRE Mille era testemunha do avanço tecnológico que a FIAT estava a implementar no setor automóvel em termos de produção.

Pela primeira vez, num motor de produção em massa, era utilizado o sistema de fusão Policast que utiliza um molde descartável de poliestireno expandido.

A automação e otimização da produção introduzida pela tecnologia FIRE fez com que os tempos de produção reduzissem para metade, tendo como referência o motor FIAT 903, antecessor do FIRE Mille.

Grupo FIAT e PSA Peugeot Citroën. Um namoro antigo

Aquilo que muitos desconhecem — a documentação é escassa — é que esta tecnologia revolucionária contou inicialmente com o apoio da PSA Peugeot Citroën.

Fruto de um acordo entre o Grupo FIAT e a PSA Peugeot Citroën, celebrado no final da década de 70, italianos e franceses ajudaram-se mutuamente no desenvolvimento de diversas soluções, inclusive da tecnologia FIRE.

Por motivos que se desconhecem — talvez alguém na nossa comunidade de leitores nos possa ajudar — a PSA Peugeot Citroën decidiu abdicar desta tecnologia, nunca tendo equipado nenhum modelo com esta nova família de motores.

Ou terá sido a FIAT a guardar para si os frutos deste investimento?

Os dois grupos «juntaram os trapinhos» em múltiplas ocasiões. Fosse no desenvolvimento e produção de veículos comerciais (Fiat Ducato, Peugeot Boxer, etc.), ou na entrada do segmento dos MPV (Citroën Evasion, Fiat Ulysse, etc), mas foram precisos quase 40 anos para passarem a um relacionamento mais sério.

Como sabemos, hoje o Grupo FIAT (ex-FCA) e o Grupo PSA estão unidas através do Grupo Stellantis, cuja liderança está a cargo de um gestor português, Carlos Tavares.

Motores FIRE. Uma longa dinastia

Apesar da fama — muitas vezes injusta — de falta de fiabilidade, que durante anos associou-se às mecânicas italianas, os motores FIRE vingaram e conquistaram uma legião de fãs.

A maior e mais difícil prova de superação foi o tempo. Lançado originalmente em 1985, os motores FIRE duram até aos dias de hoje, resistindo a todas as mudanças que a indústria automóvel atravessou desde então.

FIAT PANDA MK1
Alicerçados na sua simplicidade e fiabilidade mecânicas, os motores FIRE conheceram versões com 0.75, 1.0, 1.1, 1.2 e 1.4 litros, de 8 e 16 válvulas.

Ainda hoje podemos encontrar motores FIRE na gama Abarth, através dos blocos 1.4 litros Turbo, cujas potências superam os 180 cv nas versões mais potentes. Muito longe dos 45 cv do primeiro capítulo desta tecnologia.

Por isso, por tudo aquilo que representaram em termos tecnológicos, pelos milhões de carros que equiparam, e pelas muitas histórias que certamente muitos de vós têm para contar ao volante de modelos animados por este motor, não temos dúvidas que o motor FIRE merece um lugar especial no «Olimpo dos motores».

Bem sabemos que é motor modesto. Mas nem a maior das guerras se vence sem «soldados rasos». Por isso hoje distinguimos este motor pioneiro, que ainda ainda hoje encontramos em vários modelos em circulação nas nossas estradas.

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Um motor que inclusivamente marcou um dos primeiros capítulos de um namoro que agora se transformou num casamento: o Grupo Stellantis.

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