Especial Grande entrevista Carlos Tavares. “Futuro elétrico foi decisão de políticos eleitos”

Especial Salão de Paris 2024

Grande entrevista Carlos Tavares. “Futuro elétrico foi decisão de políticos eleitos”

Carlos Tavares, pragmático nas palavras, não se esquiva aos tópicos mais quentes da indústria e aos da própria Stellantis, que está a ter um 2024 desafiante.

Carlos Tavares é neste momento um dos nomes mais mediáticos na indústria automóvel. Por aquilo que fez, por aquilo que está a fazer e pela resposta às convulsões que estão a acontecer no setor.

Estivemos à conversa na semana em que foi anunciada a sua saída da Stellantis, grupo que ajudou a montar em plena pandemia e segundo o próprio, foi um trabalho que fez debaixo de uma oliveira em Portugal. A entrevista decorreu à margem do Salão de Paris.

Os avanços e recuos da eletrificação, a ofensiva e a parceria chinesa, os problemas no mercado norte-americano, as dificuldades na Maserati e o virar das fortunas na Alfa Romeo, e ainda sobre o “estar no lado certo da história”, foram muitos dos tópicos abordados.

Carlos Tavares, CEO da Stellantis
© Stellantis Carlos Tavares, CEO da Stellantis, foi um dos oradores no Paris Automotive Summit, no âmbito do Salão de Paris 2024

Volume vs margens

Existe a crença generalizada de que as marcas premium são as que mais lucro dão aos fabricantes de automóveis, mas na Stellantis não é exatamente assim. Como vai resolver o problema e porque é que ele foi criado?

Carlos Tavares (CT): Quando falamos das marcas premium na Stellantis referimo-nos a Alfa Romeo, Lancia e DS Automobiles que, na verdade, têm cerca do dobro das margens de lucro das marcas generalistas, para deixar uma equação simples. Quando temos boas margens tentamos vender mais e podemos cair na tentação de querer vender demais, forçando mais carros do que o mercado deveria receber e isso acaba por destruir as margens.

Foi o que aconteceu há poucos anos com a Mercedes-Benz, a BMW e a Audi que entraram numa corrida desenfreada para serem a marca premium mais vendida do mundo. E o resultado foi que as três baixaram as suas margens de lucro para muito próximo das nossas. Fazemos as coisas com cuidado e sem ambição desmedida de volumes.

Pode dar exemplos concretos?

CT: A Alfa Romeo, por exemplo, estava a perder fortunas e demos a volta à situação em tempo recorde, depois de a marca ter estado à venda. O 33 Stradale ajuda a compor as nossas finanças, o Junior está a ter encomendas muito elevadas, o Tonale é outro carro com procura e vamos ter produtos renovados nos próximos dois anos, com os novos Stelvio e Giulia.

Mas na Maserati a história é bem diferente. Porquê?

CT: Aí já estamos no segmento de luxo desportivo, acima de premium. Pegámos na Maserati e elevámos as margens de lucro até aos 9% e depois surgiram problemas com os concessionários chineses que queriam fazer descontos muito grandes, como sempre acontece, e tivemos que estancar o problema, o que afetou os volumes.

Depois não conseguimos compensar com as vendas nos Estados Unidos (EUA) porque o plano de marketing falhou por completo. No segundo trimestre deste ano foi-me apresentado um plano de marketing para várias marcas nos EUA, que me pareceu demasiado arriscado. Deixei passar porque as equipas de cada uma das marcas devem ter a sua autonomia e margem de manobra…mas depois tem que existir responsabilização.

Maserati GranTurismo Trofeo
© Maserati

O plano foi um fracasso e por isso foi necessário substituir o diretor-executivo e colocar em marcha um novo plano de negócio. Atuámos rapidamente, depois da minha ida aos EUA e foi quando emitimos um alerta de incumprimento de lucros porque era evidente o que estava a acontecer.  

O mercado norte-americano é mais competitivo do que o europeu?

CT: Não, não é. O que acontece é que o modelo de distribuição é diferente. Na Europa 50% dos carros que fabricamos já têm cliente quando estão nas linhas de montagem, nos EUA apenas 5%.

Quando recebo as estimativas de vendas nos EUA elas aparecem com números muito altos, mas são apenas estimativas baseadas no entusiasmo que cada modelo gera nos concessionários, não nos clientes. E essa diferença… faz toda a diferença.

Porque muitas vezes o concessionário não vê o mesmo que o consumidor, devido à sua visão, que é tendenciosa. É muito diferente medir o entusiasmo do concessionário ou a procura real que um produto vai suscitar.

Estamos a trabalhar na resolução dos problemas com os concessionários e em três meses já reduzimos o inventário em 50 000 carros (de 430 000 para menos de 378 000 carros) e até ao Natal o objetivo é de estarmos abaixo dos 330 000. Acho que estamos no bom caminho para o conseguir. 

Fica a ideia de que a DS e a Lancia são marcas com pouca expressão fora dos seus países de origem. Porquê?

CT: É verdade. Acredito que primeiro é necessário que as marcas tenham uma âncora forte no seu país e isso demora algum tempo, mas é o que estamos a fazer. Depois podemos expandir para outros mercados de forma mais nítida, mas sempre tendo em conta que não precisamos de fazer volumes muito elevados, apenas conseguir melhorar o valor da marca e, com isso, garantir as margens de lucro.

Teria sido muito fácil fechar o caixão da Lancia, que estava moribunda: tinha um carro, o Ypsilon, com 14 anos de vida, acabávamos a sua produção e os concessionários nem sequer se queixavam muito porque também eram concessionários FIAT.

Lancia Ypsilon - 3/4 de frente
© Lancia Lancia Ypsilon. Poderá chegar a Portugal em 2025.

Teria sido muito fácil, com um sopro, desaparecia. Mas sabendo o valor da história da marca, achei que seria muito mais sensato recuperá-la porque, afinal de contas, é algo que os chineses não têm… marcas com este valor e esta história que as sustentem.

Elétricos acessíveis

No início de 2023 disse-me que não estava certo de que iria conseguir ter um automóvel elétrico para os clientes que, historicamente, compravam no intervalo de 15-20 mil euros e que talvez fosse boa ideia considerar serviços de mobilidade para esses clientes.

O acordo com os chineses da Leapmotor é a sua nova resposta a essa questão? E não irá ter uma guerra fraticida dentro da Stellantis, entre a Leapmotor e a Citroën?

CT: A Leapmotor é parte da resposta que temos hoje para essa questão, mas não é a única. O Citroën C3 elétrico tem um preço de entrada de 20 000 euros, o que quer dizer que com um incentivo em alguns países europeus pode descer até perto dos 15 000 euros. É onde conseguimos chegar com a nova plataforma Smart Car e mesmo as versões mais equipadas, podem ficar perto dos 15 000 euros a 17 000 euros nos países com incentivos mais altos. Isso será igualmente verdade com o FIAT Grande Panda, que usa a mesma arquitetura. E sem perder dinheiro, claro. As margens são pequenas, mas não são projetos deficitários.

Por outro lado, a Leapmotor vai dar à Stellantis a capacidade de oferecer uma alternativa elétrica nessa faixa de preços, nomeadamente com o citadino T03 que a Europa conheceu no Salão de Paris. E, por último, continuaremos a investir nos serviços de mobilidade. O nosso projeto Free2move finalmente, está a dar um lucro (mesmo que marginal).

Já que tocou no assunto, a evolução dos serviços de veículos partilhados não teve a ascenção meteórica que era vaticinada antes do covid-19. É uma surpresa?

CT: Sim e não. No início da década era visto como o futuro da mobilidade, mas a verdade é que não teve o desenvolvimento esperado, o que nos mostra que há muitas tendências que se anunciam como sendo o futuro e que em poucos anos perdem expressão e esse horizonte.

Alfa Romeo Junior Veloce Caramulo Carlos Tavares
© Alfa Romeo Portugal Carlos Tavares marcou presença no Caramulo Motor Festival aos comandos do novo Alfa Romeo Junior.

As pessoas continuam a gostar de ter o seu carro e de colocar lá dentro os seus bens e a sua personalização e isso é algo que acabou por limitar a expansão desse negócio.

O parceiro chinês

O que está a aprender com esta proximidade com a chinesa Leapmotor?

CT: De onde vem a sua competitividade? Como conseguem oferecer os veículos muito mais baratos? Três coisas, essencialmente: baterias, motores e arquiteturas eletrónicas… porque são muito mais rápidos do que nós e logo, muito mais competitivos. 

São mais rápidos porque não têm férias… só trabalham… Para os europeus o serem, todo o sistema em que vivemos teria que ser profundamente alterado…

CT: É verdade e não acho que isso seja possível. Eu trabalho continuamente e as pessoas da Stellantis também trabalham árduamente, mas de vez em quando queixam-se sobre pressão, objetivos ambiciosos, etc. Por isso é necessário gerir todas essas questões e é um trabalho incrivelmente difícil.

Acho que a resposta passa por diminuirmos as horas que trabalhamos e que não acrescentam nada ao produto, em burocracia, em regulamentos, etc. Seria possível poupar muito tempo, ganhar rapidez, sermos mais inteligentes a trabalhar, apenas melhor em vez de mais. No mundo ocidental gastamos muitas horas com tarefas que não acrescentam valor para o cliente final.

O futuro de Mangualde

A ameaça de encerramento de fábricas é real com a ofensiva agressiva dos chineses, nomeadamente na Península Ibérica?

CT: O futuro das fábricas na Península Ibérica é, de momento, risonho, como resultado do excelente trabalho feito na produtividade e qualidade. Mangualde tem os melhores índices de produtividade das fábricas Stellantis na União Europeia.

Fábrica da Stellantis
© Stellantis Linha de produção na fábrica da Stellantis, em Mangualde. É lá que são produzidos veículos comerciais ligeiros como o Citroën Berlingo e o Peugeot Partner. Recentemente começaram a ser produzidas versões 100% elétricas, tornando-se na primeira fábrica automóvel nacional a fazê-lo em grande escala.

Quer dizer que no dia em que Mangualde, Valladolid, Madrid e Vigo estiverem em risco, já as outras fábricas a norte na Europa terão tido sérios problemas?

CT: Não é uma avaliação tendenciosa, apenas extraída dos KPI (ndr: Indicadores-chave de Performance) que as minhas equipas me apresentam.

Planos de eletrificação são para manter. Mas…

As cada vez mais restritivas normas que estabelecem limites de emissões e um mínimo de veículos elétricos em cada mercado, dificultam a missão dos fabricantes de automóveis. Como está a Stellantis a preparar-se para esse futuro imediato?

CT: Se as normas antipoluição estiverem à frente daquilo que o consumidor quer, os governos devem contribuir para o objetivo, dando dinheiro aos seus eleitores para poderem comprar os carros elétricos que a equação pede. Algo que, juntamente com os nossos esforços, deverá ser possível, mesmo com impacto nos nossos resultados financeiros.

Na Stellantis, já investimos um total aproximado de 25 mil milhões de euros nesta transição (e agora estamos em 14 mil milhões de euros por ano), mas sem os incentivos (estatais) não creio que seja viável, porque sem eles o consumidor não poderá comprar um carro elétrico e sem isso não vai haver transição.

Nos últimos meses, vários fabricantes anunciaram que iam atrasar/rever os seus planos anunciados para se tornarem 100% elétricos e algumas marcas admitem que só o vão fazer em 2035. Algumas das marcas da Stellantis o fez?

CT: O que está a acontecer agora — e isso pode-se ver neste Salão de Paris — é que em vez de transitarem do mundo antigo para o mundo novo, vários fabricantes estão a fazer uma pilha com o mundo antigo por baixo e o mundo novo por cima.

Dito de outra forma, vemos marcas com plataformas para motores de combustão e depois vão aparecendo plataformas totalmente novas para elétricos. E isso tem custos elevadíssimos até porque atrasar a transição — como muitos estão a pedir —, apenas serve para piorar a situação porque os investimentos de R&D têm, no mínimo, que duplicar.

Plataforma STLA Medium do e-3008
© Miguel Dias/Razão Automóvel STLA Medium, estreada no Peugeot 3008. É uma plataforma multi-energias, ou seja, foi concebida para receber cadeias cinemáticas 100% elétricas (como se vê na imagem), assim como a combustão e híbridas (mild-hybrid e plug-in).

E isso vai deixar os fabricantes de automóveis na penúria porque, ao contrário do que muita gente pensa, a indústria automóvel não ganha muito dinheiro e não pode apostar em muitos cavalos na mesma corrida. Retardar a transição apenas serve para prolongar o tempo em que temos de duplicar os custos, por culpa da diversidade tecnológica. E isso é impossível de gerir.

Respondendo direta e de maneira simples à sua questão, vamos manter os motores a gasolina mais algum tempo e o que estamos a fazer, é a apresentar em todos os novos modelos uma versão elétrica (BEV ou elétrico a bateria) e uma versão híbrida ligeira (mild-hybrid ou MHEV). É o caso do novo Peugeot 3008, o novo Citroën C3, o Jeep Avenger, o Alfa Romeo Junior, todos eles com grande sucesso. A estratégia BEV & MHEV foi a escolhida para irmos gerindo esta transição de data incerta.

Futuro elétrico

Nesta indústria, só a Stellantis não tem interesse no adiamento da data em que os motores de combustão serão banidos, em 2035…

CT: Sem dúvida. Quando essa data foi definida fomos muito críticos porque achámos que era demasiado caro e não era a maneira mais eficiente de resolver o problema do aquecimento global, mas isso aconteceu há cinco ou seis anos.

Mas agora, passado todo este tempo, trabalhámos duramente para estarmos prontos em 2035. Temos 16 elétricos no segmento B (mais acessível) num total de 40 modelos sem emissões no mercado até ao final do ano. Por isso acho que devemos manter o plano, porque queremos estar no lado certo da história. Mas as regras têm que ser estáveis e fiáveis. É a única coisa que pedimos.

Está sozinho nessa posição, ninguém apoia essa sua posição. Isso preocupa-o?

CT: Não tenho intenções de concorrer a nenhum lugar político, por isso não me preocupa. E tenho o apoio dos meus filhos e dos meus netos, que é o mais importante que poderia ter. Dirigir uma empresa de outra forma, não cumprindo as normas de emissões e depois aceitar pagar para comprar emissões, não seria ético e não poderia ser explicado a uma criança de três anos.

O futuro é então, irremediavelmente, elétrico?

CT: Foi o que decidiram os políticos eleitos pelos cidadãos, sendo estes pessoas que compram e não compram automóveis, mas também respiram o ar de todos.

Citroën ë-C3 na estrada, frente 3/4
© Cittroën Citroën ë-C3.

E posso assegurar que um carro elétrico é um carro melhor do que um a combustão em termos de conforto de rolamento, performances, controlo dos movimentos da carroçaria e isso é algo que também é verdade numa pista de corridas. Só perdem na travagem, porque são mais pesados, mas resolve-se com pneus mais largos — não é dramático. Não falando na questão ambiental, claro.

O problema é que ainda tem inconvenientes: são difíceis de carregar — os cabos de carregamento ocupam parte da mala, são pouco práticos de manusear, sujam-se e há problemas de disponibilidade de carregadores.

Quando retirarmos esse problema da equação (imaginemos), que obstáculos sobram? O peso, que será resolvido quando as baterias de estado sólido chegarem em 2030. Fará com que a densidade energética das baterias duplique, permitindo que uma bateria emagreça de 500 kg para 250 kg. Ao mesmo tempo baixará exponencialmente os custos (menos células, baterias mais pequenas), que poderão finalmente descer para o nível dos carros com motor de combustão. E depois podemos continuar a viver.

Não há alternativa, portanto?

CT: Não me parece. No início de outubro, a minha filha mais nova estava a guiar no centro de Portugal e foi forçada a passar numa estrada cercada por chamas e a situação foi tão crítica, que o painel da porta derreteu quando ela teve que passar quase pelo meio do incêndio.

Metade do país — 130 000 hectares — esteve a arder e este tipo de situações calamitosas (como inundações, furacões, etc) é cada vez mais frequente e com consequências cada vez mais graves. Podemos ignorar tudo isto e estar no lado errado ou aceitar e lutar para conseguir cumprir esses objetivos e estar no lado certo da história. Mas temos uma responsabilidade para com os nossos filhos e netos.

Em 2026 vai retirar-se da liderança da Stellantis. Que perfil de diretor-executivo acha que deve ser procurado?

CT: Dentro de dois anos terei acumulado 45 anos de indústria automóvel e 68 de idade, por isso, depois de ter escutado atentamente os pareceres da minha mulher e dos meus filhos, entendemos que era razoável parar. Tomei a decisão de não continuar e comuniquei-a à Stellantis.

Carlos Tavares, CEO da Stellantis
© Stellantis

Agora seguem-se os trâmites normais para a nomeação do novo diretor-executivo, mas como não quero realmente abrir espaço para especulações sobre quem poderia ser a pessoa certa para o cargo, não lhe vou poder responder.