Notícias Entrevistámos o CEO da Tesla chinesa. “Se pudesse alterava várias decisões na NIO”

Entrevista

Entrevistámos o CEO da Tesla chinesa. “Se pudesse alterava várias decisões na NIO”

As ambições são muitas, mas as dificuldades têm sido ainda maiores. Entrevistámos William Li, CEO da NIO, uma das marcas chinesas mais disruptivas da última década.

CEO & President da NIO - William Li
© NIO

As dores de crescimento da NIO continuam. Apontada desde a sua fundação, em 2014, como a «Tesla chinesa» devido ao seu modelo de negócio disruptivo (troca de baterias), foco nos 100% elétricos e nos sistemas de condução autónoma, esta marca têm sofrido várias flutuações ao longo dos últimos anos.

Na China, por exemplo, as vendas têm progredido lentamente e na Europa estão a precisar de um forte empurrão. Um empurrão que já tem nome: Onvo e Firefly. Duas marcas cujo objetivo é aumentar as vendas deste construtor chinês.

Quando fundei a NIO, a China vivia um período de crescimento económico exponencial e quase não precisávamos do mercado externo.

William Li, CEO da NIO

Entrevistámos William Li, CEO e fundador da NIO, que nos falou dos planos da marca para os vários mercados e sobre as possibilidades de construir fábricas na Europa. Para já, o plano é menos ambicioso: colocar as contas no «verde» até 2026. A indústria automóvel está a mudar e a NIO está a tentar acompanhar esta mudança sem “perder o caminho”.

CEO & President da NIO - William Li
© NIO Empreendedor em tecnologia e mobilidade, antes de fundar a NIO, William Li acumulou experiência na Bitauto, uma das maiores plataformas online de serviços automóveis na China.

Fundou a NIO em 2014. O que mudou no mundo nesta última década?

William Li: Mudou imenso. As relações entre os países e os negócios globais eram mais próximas. Quando fundei a NIO, a China vivia um período de crescimento económico exponencial e quase não precisávamos do mercado externo, mas hoje, a macroeconomia tem muito mais impacto na empresa e esse era um conhecimento que não tínhamos na altura (tal como também não tinham os empresários chineses da minha geração) e que temos vindo a adquirir.

O mercado norte-americano é muito lucrativo e estará sempre no nosso horizonte, mas há muitas implicações políticas e legais.

William Li, CEO da NIO

Quando fomos cotados em bolsa, em 2018, ficámos aquém das nossas expectativas, uma vez que não conseguimos obter financiamento suficiente nos EUA, causando-nos uma situação difícil em 2019, da qual só conseguimos sair graças a uma enorme resiliência.

Nio ET5 de frente em andamento
© NIO NIO ET5. O modelo que pretende rivalizar com o Tesla Model 3.

Queremos tornar-nos uma empresa global, servir mais utilizadores e a comunidade, investir em I&D (investigação e desenvolvimento) e alimentar o nosso ecossistema, que consiste em produto, tecnologia, serviço e comunidade.

A nossa direção não mudou, mas quando se trata do plano de ação, há muito a melhorar, com a absoluta necessidade de nos adaptarmos mais rapidamente para lidar com as mudanças externas, especialmente os altos e baixos do mercado. E, sobretudo, evitar alterações constantes de estratégia sob pena de nos perdermos no caminho.

A comunidade NIO na China é impressionante, na Europa estão agora a dar os primeiros passos. Como podem aspirar ser realmente globais sem presença nos Estados Unidos?

WL: Desde o início que temos um departamento de I&D em São José, na Califórnia, no qual trabalham atualmente quase 200 pessoas. O mercado norte-americano é muito lucrativo e estará sempre no nosso horizonte, mas há muitas implicações políticas e legais. De momento, o foco da nossa atenção está em triunfar no mercado chinês e só se o fizermos poderemos partir para uma dimensão global. Algo que não deverá acontecer antes de 2028.

Depois de uma fase de lançamento com expectativas promissoras, o momento atual não é tão positivo, com resultados comerciais aquém do esperado. Para além de perspetivar um aumento de vendas, a NIO tem planos para reduzir custos?

WL: Entre 2022 e 2024 lançámos o nosso segundo ciclo de produto, veículos que vieram substituir os do primeiro ciclo, nos quais cometemos alguns erros, o que é normal tendo em conta que somos uma nova marca e um novo fabricante de automóveis. Aprendemos com eles. Mas também fomos atingidos por problemas externos inesperados, como o aumento do preço do lítio e o impacto da pandemia.

Agora, com a chegada do ET9 e das novas marcas Onvo e Firefly, o otimismo está de volta à nossa empresa até porque o free cash flow foi positivo na segunda metade de 2024. Confiamos que seremos capazes de duplicar as nossas vendas em 2025 e de nos tornarmos uma empresa lucrativa em 2026.

Se pudesse recuar três anos no tempo, que decisão alteraria?

WL: Se pudesse alterava várias decisões na NIO. A mais importante, talvez, seria a forma como implementámos a rede de estações de troca de baterias, um processo que deveria ter sido mais dinâmico e mais intenso, para que a falta dessa infraestrutura fundamental nunca tivesse um impacto negativo nas vendas.

Estação de troca de baterias 4.0 da Nio
© NIO Na imagem, uma das estações de troca de baterias da NIO na Europa.

Estamos a acelerar a expansão dessa rede e, no final de 2026, a maioria dos distritos da China terão, pelo menos, uma estação de troca de baterias (com dois anos de atraso, na minha opinião).

A NIO anunciou uma cooperação com a CATL para o serviço de troca de baterias. Como vai funcionar esse acordo e como vai fazer evoluir a sua rede de estações de trocas de baterias na Europa?

WL: A CATL tem vindo a investir na área de troca de baterias há vários anos e, percebendo o seu enorme potencial, acabou por reforçar essa aposta recentemente. Na China, é uma infraestrutura com uma crescente capilaridade. Temos capacidade para instalar 200 estações de trocas de baterias por mês, que serão mais 2000 durante todo o ano de 2025.

Na Europa, o desenvolvimento da rede é mais lento, especialmente no caso da NIO, enquanto as estações da Firefly serão muito mais simples e rápidas de instalar. Atualmente, já temos uma unidade de montagem de estações de substituição de baterias a funcionar na Hungria.

Será possível rentabilizar as estações de trocas de baterias com parcerias com outros fabricantes de carros elétricos?

WL: Começámos a investir na rede em 2018, mas para os outros fabricantes de automóveis elétricos é uma decisão que requer muita ponderação, dado que implica alterar as baterias. Estamos em discussões com outros fabricantes para que isso possa acontecer, mas é algo que pressupõe mudanças na tecnologia e nos modelos de negócio.

Quando olhamos para os serviços da cloud — seja a Google, Microsoft, Amazon, Tencent, Alicloud, ou ByteDance—, percebemos que o serviço começa sempre com o crescimento da sua própria capacidade e só depois vem a abertura gradual a terceiros, até se tornar um negócio independente. Julgo que algo semelhante vai acontecer na área da troca das baterias.

Parecem ter existido problemas na disponibilidade de baterias da BYD, que afetaram a produção da Onvo e que os mesmos seriam compensados com mais baterias de um outro fornecedor, a CATL. Coloca em risco o seu objetivo de fabricar 20 mil Onvo L60 já em março?

WL: O nosso plano de produção para a Onvo, na fábrica em Hefei, foi sempre o de utilizar apenas baterias da BYD de 60 kWh até ao final de outubro e, a partir de novembro, já teríamos suficientes baterias de 85 kWh da CATL.

Desde o início de dezembro, já contámos com três fornecedores de baterias e essa questão foi ultrapassada. Entregámos 10 000 Onvo entre outubro e novembro, 10 000 em dezembro e vamos chegar aos tais 20 000 no próximo mês de março.

É sabido que a Europa e o seu mercado de quatro milhões de automóveis compactos por ano eram um «alvo» da sua empresa. O que mudou com a imposição das tarifas?

WL: As tarifas afetam o nosso plano de negócio, sim, porque esmagam as margens de lucro. Mas continuo a achar que a Firefly vai ser competitiva, por estar a preparar o lançamento de modelos elétricos inteligentes e com uma tecnologia muito moderna, que acaba por ser a montra de uma década dos nossos investimentos em I&D, o que nos deixa muito confiantes.

Já no primeiro semestre deste ano vamos entrar em vários mercados, com parceiros selecionados em cada país, que serão responsáveis pelas vendas e serviços localmente.

Produzir localmente na Europa é uma solução para contornar as tarifas implementadas sobre os veículos “made in China”?

WL: É algo com que temos de viver e que até prejudica os consumidores europeus, que deixam de ter tantas opções de escolha. Se as nossas vendas na Europa atingirem um volume significativo, construir os carros localmente faz sentido, tanto pelas próprias tarifas como pela redução de custos e tempos de transporte.

Na China, passam apenas duas a três semanas desde o momento da pré-encomenda do veículo até a sua entrega ao cliente e esse tempo reduzido permite-nos trabalhar com inventários muito reduzidos.

Quando conseguimos vender cerca de 100 mil automóveis num ano numa determinada região, temos o modelo económico ideal para dar início a uma produção local. É difícil para a NIO atingir este número na Europa, porque se trata de uma marca de posicionamento de preço elevado, mas com o lançamento das novas marcas Onvo e Firefly, o cenário muda bastante.

O design é sempre um dos destaques nos modelos da NIO, mas agora surgem os Firefly com uns faróis dianteiros que estão a causar muita discussão e a desagradar a muitos potenciais clientes. É possível mudá-los?

WL: Estamos cientes dessa discussão e sabíamos que iriam causar polémica desde o dia em que os aprovámos com o departamento de estilo. Não é fácil conseguir um design marcante num carro pequeno, mas é o que pretendemos com a filosofia da Firefly: “Viva, Sólida, Atenciosa”.

Firefly - dois modelos
© Firefly O primeiro modelo da nova marca da NIO: a Firefly.

Algumas pessoas gostam, outras não, mas o mais importante é que esteja de acordo com os valores que queremos criar para a marca.

Depois da primeira experiência de condução de um Onvo, fica a ideia de que poderia ser um modelo da marca NIO, tão positiva foi a impressão deixada. Como vai ser feita a diferenciação entre a Onvo e a NIO?

WL: Um Onvo será mais acessível, sim, mas continuará a ter muita qualidade. No plano dos sistemas de ajuda à condução (ADAS), só para dar um exemplo, os Onvo não vão dispor dos mais avançados LiDAR, mas sim um sistema puramente visual e, logo, com um suporte tecnológico mais simples.

Por outro lado, quando olhamos para os primeiros dados de vendas da Onvo, na China, vemos que apenas 2% de clientes trocaram um NIO por um Onvo, sendo a taxa de conquista muito mais elevada quando consideramos a Tesla.

Um número crescente de fabricantes chineses está a intensificar o desenvolvimento de chips semicondutores, algo que requer muito know-how e recursos. O que significa para o futuro? Ainda há problemas na popularização dos semicondutores da China?

WL: O desenvolvimento de chips é, acima de tudo, uma decisão comercial. Somos o maior cliente de chips de condução autónoma da Nvidia (200 000 NIO estão equipados com quatro chips de condução autónoma cada, o que representa um investimento elevado).

Do ponto de vista financeiro, estamos a utilizar o investimento em I&D para eliminar parte desse custo no futuro e também para que a nossa empresa adquira esse know-how tecnológico fundamental.

Definir chips com base nos nossos algoritmos e modelos de condução inteligentes e adaptá-los às nossas necessidades específicas pode alterar significativamente o seu desempenho, como se percebe pelo facto de a nossa tecnologia estar já à frente do que existe no mercado.

Onvo L60 - frente lateral
© Onvo O L60 é o primeiro modelo da nova marca Onvo.

Esta supremacia é crucial para o desempenho dos sistemas de condução autónoma e, consequentemente, esta abordagem não só aumenta as nossas margens brutas como também melhora a experiência do utilizador.

Além disso, observamos que os chips estão cada vez mais enredados em questões políticas. Numa perspetiva de gestão de risco da cadeia de fornecedores, é essencial lidar com esta situação com prudência. No entanto, devemos considerar a viabilidade comercial, numa lógica empresarial.

Se um chip produzido na China tem má qualidade a um custo elevado, deixa de ser viável pois a relação qualidade-custo é inaceitável. Vice-versa, se o chip for de alta qualidade e tiver um preço razoável, certamente consideraríamos usá-lo.

A NIO vai assumir, na plenitude, o estatuto de “Tesla chinesa”?

WL: Se olharmos para os números, os modelos S e X da Tesla estão a vender muito pouco na China, onde o foco está mais no Model Y e no Model 3. A massificação da Tesla realmente aconteceu com os carros mais acessíveis. Com a chegada do nosso Onvo L60 (concorrente direto do Y) seguramente vamos passar a ser rivais diretos.