Crónicas Quanto tempo falta para um carro chinês liderar as vendas em Portugal?

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Quanto tempo falta para um carro chinês liderar as vendas em Portugal?

Nos motociclos já aconteceu. Os japoneses, que sempre lideraram, foram ultrapassados pela CFMoto. Nos automóveis é uma questão de tempo? O que podemos aprender com a indústria das duas rodas.

Leapmotor B10, perfil
© Leapmotor

Este verão, aconteceu o que alguns julgavam improvável. Uma mota chinesa liderou as vendas em Portugal: a CFMoto 450 MT. Uma trail de média cilindrada, motor bicilíndrico, ciclística de mota maior e preço de mota mais pequena.

Parece simples, não é? É sempre assim. Quando já está feito todos acham fácil. Mas até agora nenhuma outra marca tinha conseguido juntar este ingredientes de forma tão eficaz. E nem a questão da proveniência ou notoriedade da marca foi um entrave ao sucesso deste modelo.

O que é que isto importa para a questão suscitada no título? Que lições podemos retirar para o comércio e indústria automóvel? É sobre isso que vou refletir nas próximas linhas, avisando desde já que no final podem acabar com mais dúvidas do que certezas.

Olhar para as motas para ver os carros

A «invasão chinesa» no setor automóvel europeu é uma vaga recente que apenas ganhou momento no final do ano passado. No setor dos motociclos esta invasão já tem pelo menos uma década. Começou nas 125 cm3 e, lentamente, foi estendendo-se aos segmentos mais elevados das duas rodas.

CFMoto 450 MT, com indicação de ser ter sido a mota mais vendida em junho em Portugal acima das 125.
É esta a mota que deixou as outras marcas a pensar na vida. A CFMoto 450 MT.

Hoje já não são apenas «pequenas 125» ou motas de média cilindrada de gosto duvidoso que apostam tudo no preço. Já temos produtos que nivelam pelo melhor do que se faz na Europa ou no Japão.

Na maioria dos casos até montam motores europeus, componentes das melhores casas alemãs, e ostentam designs ou marcas pensadas e nascidas na Europa. Some-se a isto preços competitivos e temos a receita perfeita para atrair muito consumidores.

Ainda não chegámos lá nos automóveis

A fórmula que encontramos na CFMoto 450 MT ainda não foi encontrada nos automóveis. Ainda não há nenhum modelo de uma marca automóvel chinesa que ofereça, num só produto, as seguintes características: um preço mais baixo que as marcas ocidentais, um design convincente, uma boa performance, uma qualidade geral elevada, uma oferta única (fator wow) e um preço muito bom. Sim, eu repeti o fator preço duas vezes.

Se olharmos para as propostas que vão estar ou já estão disponíveis no mercado — da BYD, MG, Xpeng, Aiways, Forthing, Leapmotor, etc —, ainda não houve nenhum modelo que batesse nestas balizas todas. Falta sempre qualquer coisa.

KTM RC16 2022
Philip Platzer A KTM é das marcas europeias que está a sofrer mais com as mudanças no mercado. Um espécie de equivalente de duas rodas à situação da Volkswagen na indústria automóvel.

Não me interpretem mal. Falta sempre qualquer coisa no sentido de ser uma escolha quase inequívoca. Não haver alternativa. Como foi um dia com o Nissan Qashqai, que dominou a seu bel prazer o mercado dos SUV familiares.

Não tenho dúvida que lá chegaremos um dia: que uma marca chinesa encontrará o seu próprio Nissan Qashqai ou Volkswagen Golf — com as devidas adaptações, naturalmente. E as marcas de automóveis europeias e japonesas têm de estar preparadas para isso. A melhor forma que têm de se preparar é procurarem o mesmo.

Um produto apelativo, diferente, com bom preço, uma tecnologia convincente e quase inequívoco na escolha. Sim… é mais fácil dizer do que concretizar. Talvez um dia, quando a notoriedade não for um problema, a questão do preço talvez já não seja.

As marcas europeias estão condenadas?

Há sinais importantes que mostram que não há guerras perdidas à partida. Veja-se o rebuliço que foi no EICMA — um dos principais salões de duas rodas do mundo, que se realiza todos os anos em Milão, Itália. Perante o sucesso da CFMoto 450 MT vimos a resposta mais certeira e entusiástica das várias marcas de motas dos últimos 20 anos. Acordaram!

MG4 na estrada, frente 3/4
© MG Apesar de todo o alarme — escolham o adjetivo que preferirem — a verdade é que em Portugal ainda não há nenhuma marca chinesa sequer no TOP 20 (dados da ACAP).

Depois de anos a fio sem uma oferta certeira no segmento em que esta mota se insere, todas as marcas estão a acotovelar-se para reclamarem o seu pedaço. A Honda atualizou a CRF 300 L, a BMW apresentou o protótipo de uma nova 450 bicilíndrica, a KTM refez completamente a sua 390 Adventure e até a Suzuki decidiu descer do seu “pedestal” para renovar uma mota que já é pedida há mais de 20 anos: uma “nova” DR-Z 400.

É isso mesmo: há 20 anos que a Suzuki ouvia um coro de consumidores a implorar por uma DR-Z 400 e nunca a lançou. Agora, de um momento para o outro, lança essa mota onde apenas alterou uns plásticos e adicionou uma injeção eletrónica. Estavam acomodados…

Talvez seja isto que a indústria automóvel europeia e japonesa necessitem: de um abanão. A apresentação e comercialização de modelos como o Renault 5 E-Tech e futuro Twingo, Citroën ë-C3, Volvo EX30 e Skoda Elroq mostram que não estão a dormir.

E por isso, no dia em que uma marca chinesa liderar as vendas poderá não ser dramático. Dramático será se não houver capacidade de resposta.

Onde é que já vimos esta história?

Soar os alarmes da Europa devido à entrada de novos players não é uma história nova — o guião já está um pouco gasto, na verdade. As notícias são quase sempre dramáticas e no final revelam-se exageradas.

Foi assim com os japoneses na década de 80 (dizia-se que o Japão ía dominar o mundo…) e com os sul-coreanos no início dos anos 2000 também — com a Hyundai e a Kia na liderança.

A verdade é que o mercado acabou por encontrar um equilíbrio natural. Muitas destas marcas montaram operações na Europa e hoje fazem parte da “fotografia de família”. É possível que com as marcas chinesas aconteça o mesmo. Alias, há planos de construção de fábricas chinesas na Europa que já são públicos.

BMW e Toyota assinam acordo hidrogénio
© Toyota Neste momento a Toyota é a segunda marca mais vendida na Europa.

É que a China — tal como o Japão nos anos 80 — é um país cheio de potencial, mas também tem alguns pilares a abanar: o envelhecimento da população, a concorrência interna e externa, uma nova geração a exigir melhores condições sociais e, naturalmente, a resposta dos restantes países.

Para termos noção da empreitada da China, este gigante asiático produziu aproximadamente 29 milhões de veículos em 2023 — para uma capacidade instalada de 48,7 milhões. O seu mercado interno, amplamente financiado pelo Governo, apenas conseguiu absorver aproximadamente 22 milhões de unidades. Temos aqui um diferencial de sete milhões de automóveis que é preciso vender.

A resposta está por isso, de forma natural, na exportação. Até a China já é pequena para os chineses.

As condições especiais da China

A China tem praticamente o monopólio das terras raras, tem um mercado interno gigante e uma liberdade regulamentar quase total — o Estado chinês está a assumir os custos da falência de algumas empresas e a permitir uma guerra feroz de preços. Um «salve-se quem puder» sabendo que no final quem se salvar sairá muito fortalecido.

É deste contexto que estão a brotar empresas como a CATL (líder mundial de baterias) ou a BYD (que vende carros eletrificados como mais ninguém). Estes, de forma pouco exaustiva, são os pontos fortes da China. Que colocam as empresas europeias à «beira de um ataque de nervos».

Do lado dos pontos fracos, está o envelhecimento galopante da população e o abrandamento acelerado da economia após anos e anos de crescimento na casa dos dois dígitos. É por alguns destes motivos que a China — e o resto do mundo também — no final tem de fazer contas à vida. Há muito a perder.

Mas não me parece que uma sociedade milenar, que já superou todo o tipo de provações e tem sobrevivido a todos os capítulos da história, precise de lições. Do lado europeu, pelo contrário, o importante é não esquecermos a lições que temos aprendido da pior maneira.

O excesso de burocracia, um quadro regulamentar que mais parece uma roleta russa e a indecisão face ao que fazer no médio e longo prazo não é compatível com uma economia que quer ser competitiva.

Dito isto, não sei quando é que vamos ter um carro chinês a liderar as vendas em Portugal. Mas talvez esse não seja, afinal de contas, o nosso maior problema.