Que futuro para a Bentley? A última entrevista ao CEO antes de ir para a Aston Martin

Apanhou-nos de surpresa a notícia de que Adrian Hallmark, diretor executivo (CEO) e presidente da Bentley Motors desde 2018, esteja de partida para a Aston Martin.

Até porque, muito recentemente, pudemos nos sentar com Hallmark após a divulgação dos resultados anuais da Bentley Motors, para conversar sobre a empresa e o seu futuro. Nada fazia suspeitar de que esta seria a sua última entrevista como CEO da marca de luxo britânica ou de que a sua partida estivesse iminente.

A apresentação dos resultados de 2023 começou por ser o mote para esta conversa, pelos sinais contraditórios que enviam. Por um lado, as vendas desceram 11% — ainda que os 13 560 automóveis vendidos sejam o terceiro melhor resultado de sempre —, mas por outro lado, o lucro de 589 milhões de euros (20% resultante das vendas) foi o segundo melhor de sempre.

A geração de lucro adicional deve-se, sobretudo, à escolha de automóveis personalizados e produzidos «à medida» de cada cliente — um aumento de 43% em relação a 2022. Isto sem ter lançado nenhum modelo novo em 2023.

O tr(i)unfo da personalização Mulliner

Os indicadores financeiros e as vendas registadas em 2023 causaram sentimentos distintos. Na sua opinião, o copo da Bentley Motors está meio cheio ou meio vazio?

Adrian Hallmark: Os resultados comprovam que o modelo de negócios que criámos nos últimos quatro anos, após a reestruturação da empresa, é um grande sucesso. Com apenas alguns milhares de carros a mais do que vendíamos no início do milénio, conseguimos alcançar lucros três ou quatro vezes superiores.

Isso foi possível graças ao maior conteúdo colocado nos automóveis — tecnologia, especificações e configurações distintas, com as versões Speed, Mulliner, Azure —, mas principalmente graças às possibilidades de individualização, que os clientes desejam cada vez mais.

No ano passado, mais de 70% de todos os novos Bentley entregues tinham algum tipo de conteúdo Mulliner, com um valor acima dos 39 mil euros em opções. Até agora, nunca tínhamos alcançado um nível tão elevado de personalização.

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Enquanto no passado recebíamos ocasionalmente uma encomenda «única», de um cliente exótico do Brunei, por exemplo, agora há todo um grupo de novos clientes nesta categoria. E isso é algo que nos desafia a alcançar novos patamares e a descobrir novos recursos técnicos, para fabricar automóveis que chegam a ter 400 mil euros em conteúdos personalizados.

Desempenho global da Bentley Motors

Ainda assim, nem tudo foi positivo…

AH: É verdade. No ano de 2023 as vendas das marcas de automóveis de luxo não cresceram, ao contrário do que foi observado em outras marcas premium, posicionadas abaixo da Bentley Motors, como a Range Rover ou a Mercedes-Benz nos seus segmentos mais elevados.

Regionalmente, tanto a China como os EUA tiveram um primeiro semestre difícil, mas na Europa aconteceu o oposto. Isso quer dizer que houve performances comerciais desencontradas entre regiões, pela primeira vez nesta década.

Existiram questões geopolíticas e desafios económicos — alguns resultantes dos primeiros, como o aumento das taxas de juro. Ainda assim, conseguimos navegar em águas turbulentas graças à resiliência que a empresa demonstra após a sua restruturação e estamos em boa forma para os próximos anos.

Espera regressar ao pico de volume de vendas registado em 2022, com mais de 15 mil automóveis entregues?

AH: É preciso considerar que muitas das potenciais vendas da marca foram suspensas pelos nossos clientes durante o período de pandemia, em 2021, tendo sido retomadas em 2022. Nesse ano, entregámos mais de 15 mil automóveis, mas, na verdade, construímos mais de 16 mil, um valor muito próximo do nosso limite.

Com a gama de produtos atual, com uma idade entre os cinco e os seis anos, isso representa um pico, além de termos ficado muito acima do breakeven da Bentley Motors.

Também seremos lucrativos em 2024 e quando a gama de produtos for composta em exclusivo por modelos 100% elétricos, as vendas vão ficar acima desse nível, tal como os lucros.

Neste momento, no entanto, cumprimos o que prometemos em 2020, quando dissemos que se tratava de uma empresa com um lucro potencial em torno de meio milhão de euros por ano, mas que estavam longe de ser conseguidos. Agora, em 2023, ficámos acima desse patamar.

Transição para uma gama 100% elétrica

Isso significa que as coisas vão piorar antes de melhorarem? Afinal, estamos a entrar nos anos em que serão necessários investimentos muito elevados para os futuros automóveis elétricos.

AH: Não existe nenhuma forma de evitar isso. Duplicámos, literalmente, o nosso orçamento de R&D (Investigação e Desenvolvimento) em comparação com o de há três anos. Esta é a fase de investimento maciço que durará até 2029 e irá suprimir os nossos lucros, com toda a certeza.

Em termos de industrialização, é uma enorme transformação e dou-vos um exemplo: a nova oficina de pintura é, provavelmente, o maior investimento isolado na nossa fábrica em 85 anos e estamos prestes a passar uma área da fábrica (que tem o tamanho de uma grande linha de montagem) para dois novos edifícios.

Só desta forma será possível criar o espaço necessário para a nova linha de montagem dedicada aos modelos elétricos, sendo este um processo que será concluído nos próximos 18 meses.

Houve alguma mudança no ranking de vendas por região, globalmente?

AH: Na realidade, nem por isso. Os EUA continuam a ser o primeiro mercado, seguido da China na segunda posição e da Europa em terceiro, sendo a Alemanha o país com a maior «fatia». Depois disso está o Reino Unido, o Médio Oriente e a Ásia-Pacífico.

No entanto, temos um caso de estudo na Coreia do Sul: um único concessionário em Seul vendeu 800 automóveis em 2023, o que é quase inacreditável se tivermos em conta que no Reino Unido os números de vendas ascendem a 1200, divididas por 12 concessionários.

Os próximos modelos da Bentley

A gama de modelos da Bentley não tem sido renovada nos últimos anos (só surgiu o Batur, de produção limitada, e algumas séries especiais). A renovação do produto vai acelerar em breve?

AH: No segundo semestre de 2024 iremos atualizar as gamas Continental GT e Flying Spur, já no âmbito da nossa estratégia de eletrificação. É uma fase de transição de automóveis que apenas contam com um motor de combustão, para sistemas eletrificados e que dará origem à eletrificação de toda a nossa gama de modelos.

Na atualização desses dois modelos estão incluídos quatro híbridos plug-in de desempenho elevado. Já hoje, mais de um em cada quatro Flying Spur e Bentayga encomendados são híbridos e esperamos que este valor aumente dramaticamente quando o híbrido plug-in V8 ficar disponível.

Esta ofensiva híbrida atrasou-se um pouco — estava prevista para 2023 e agora irá materializar-se entre 2024 e 2025 — e o primeiro Bentley totalmente eléctrico também «deslizou» para dois anos mais tarde. A partir daí, a Bentley irá manter o seu plano de lançar um elétrico por ano num total de cinco modelos?

AH: O nosso plano (atualizado) é apresentar o primeiro Bentley 100% elétrico até ao final de 2026, o que significa que os primeiros clientes o vão receber no início de 2027. A menos que haja um problema sério com algum dos fornecedores principais, estaremos no caminho certo, mesmo com os difíceis desafios colocados pelo software.

A partir daí, então sim, surgirá um novo elétrico por ano até 2031, totalizando cinco modelos Bentley totalmente elétricos.

Atrasos de produção

Qual foi o motivo dos atrasos no lançamento do primeiro modelo elétrico? O software?

AH: O principal motivo não foi o software e sim a arquitetura do veículo. Cada novo modelo tem de ser um Bentley, acima de tudo, e só depois um carro elétrico. Ou seja, é necessário garantir a autonomia de condução que os nossos clientes exigem — a um nível de paridade com os carros a gasolina.

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No entanto, para conseguir uma autonomia em torno dos 600 km num carro grande e pesado, precisamos de um certo patamar de potência e densidade energética na bateria, que só agora está prestes a ficar disponível. Tudo isto, atrasou o processo de desenvolvimento.

Em relação ao software, sim, houve algum atraso, mas o software que pretendemos utilizar estará disponível noutros modelos do Grupo Volkswagen, cerca de ano a ano e meio antes do lançamento do nosso primeiro modelo 100% elétrico.

Primeiro Bentley 100% elétrico será um SUV?

À primeira vista, podemos supor que o primeiro elétrico da Bentley será um veículo baixo, para ir de encontro à autonomia pretendida. No entanto, o sucesso global dos SUV é tal que quase se torna difícil imaginar que o primeiro Bentley elétrico possa ser outra coisa que não um SUV…

AH: Poder até pode. A decisão está entre apresentar um SUV, que poderia afetar as vendas do nosso modelo mais vendido (Bentayga), um modelo de menor volume que permita um risco calculado, ou então um modelo incremental para ver como o mercado responde.

Portanto, não é um dado adquirido que o primeiro Bentley elétrico seja um SUV. Na verdade, há argumentos que até recomendam que seja o último desta nova família de modelos. Vai ser preciso esperar para ver.

Pelas suas palavras, podemos subentender que o plano da Bentley se tornar uma marca elétrica até 2030 também foi adiado…

AH: Sim, «escorregou» um pouco, mas só um pouco. De 2024 a 2026 aceleraremos a conversão dos motores a gasolina para uma gama totalmente híbrida; no início de 2027 teremos o primeiro elétrico na estrada e a implementação de cinco modelos será concluída até 2031.

Provavelmente, vamos acabar por manter os híbridos em comercialização por mais algum tempo, até 2032, como resultado destes adiamentos. Mas a partir daí esperamos que todos os novos modelos da Bentley Motors sejam puramente elétricos.

Limite para a exclusividade

O Bentayga tem sido bom para a Bentley em vários sentidos, como em vendas. À medida que se aproxima esta fase com novos lançamentos, será natural e aceitável que a Bentley ultrapasse a fasquia das 20 mil unidades anuais? Existe algum patamar acima do qual não deseja estar por uma questão de manter a exclusividade?

AH: Não pretendemos crescer significativamente em volume no futuro. Mas claro, com cinco veículos em vez de quatro, atingiremos provavelmente um pico de vendas anuais entre as 18 mil e as 20 mil unidades, 17 mil em média.

O Bentayga é o nosso modelo de entrada e no nosso plano não temos veículos abaixo desse patamar de preço. Aliás, no futuro, a ideia é mesmo regressar a faixas de preço mais elevadas, onde já estivemos com o Mulsanne.

A Ferrari, por exemplo, tem quase o mesmo volume de vendas anuais que nós, com cerca de 13 mil carros por ano, sendo que, há uma década diziam que 7000 era o limite.

Não teremos uma mudança de estratégia tão evidente. Dito isto, não há limite numérico para a exclusividade, mas não queremos — e não iremos — sobrelotar o mercado.

Bentayga ainda é o campeão de vendas

O Bentaya vende mais do que o Aston Martin DBX, mas menos do que o Lamborghini Urus ou o Ferrari Purosangue. Se esse segundo SUV da Bentley receber luz verde, poderia assumir-se como um modelo mais desportivo (mais baixo), para capitalizar o apetite do mercado e contornar os problemas de autonomia?

AH: Teremos uma gama de produtos mais diferenciada no futuro, mas nunca faremos um carro como o Lamborghini Urus, por exemplo, porque somos a Bentley Motors. Ou seja, luxo em primeiro lugar, prestações elevadas em segundo.

Os nossos clientes desejam guiar os seus carros todos os dias e se a suspensão for firme, isso não proporcionará uma experiência confortável. Já temos uma oferta mais desportiva, com as versões Speed e S, mas não iremos muito além disso.

Quem paga os novos modelos da Bentley Motors

Até que ponto os Bentley com motores de combustão estão a subsidiar o desenvolvimento dos elétricos e híbridos e quando é que prevê que os veículos com novos tipos de propulsão se tornem rentáveis?

AH: Não fazemos cruzamento de subsídios. Cada modelo que fabricamos tem que conquistar o seu lugar no portfólio. A boa notícia é que os híbridos que vendemos atualmente estão a fazer exatamente isso e é esse o plano para os próximos veículos. Gerando as mesmas margens de lucro em silmutâneo.

O nosso plano é consegui-lo já com o primeiro modelo 100% elétrico, mas também nos seguintes, que é uma das grandes vantagens de fazer parte do Grupo Volkswagen: acesso a ótimas tecnologias e por um valor acessível.