Notícias À conversa com Carlos Tavares. “Os combustíveis sintéticos podem ser uma solução global”

Entrevista

À conversa com Carlos Tavares. “Os combustíveis sintéticos podem ser uma solução global”

Do envolvimento da Stellantis no automobilismo aos veículos sem emissões a preços acessíveis, não faltaram temas de discussão com Carlos Tavares, CEO da Stellantis.

Carlos Tavares
© Stellantis

Foi à margem do e-Prix de Misano, a sexta e sétima prova do campeonato de Fórmula E (13 e 14 de abril), que tivemos a oportunidade de colocar perguntas a Carlos Tavares, diretor executivo da Stellantis.

Foram debatidos vários temas, desde a estratégia de automobilismo do grupo, até ao caminho que os construtores terão de preparar, para produzir veículos livres de emissões a preços acessíveis.

Depois de vários anos envolvida na Fórmula 1, a Alfa Romeo está fora do maior palco do automobilismo do mundo. Há planos para a Alfa Romeo em competições automóveis?

Carlos Tavares (CT): A decisão ainda não foi tomada. É claro que dada a herança e o ADN da marca teremos de regressar ao automobilismo. Jean Marc Finot (chefe do automobilismo da Stellantis) e Jean-Phillipe Imparato (diretor executivo da Alfa Romeo) estão à procura de opções.

Alfa Romeo C43, no Miami Grand Prix, em 2023
© Stellantis Alfa Romeo C43 no Miami Grand Prix, em 2023

No entanto, a decisão não deverá ser tomada e anunciada antes do final deste ano. De momento, estamos entusiasmados com o nosso envolvimento na Fórmula E com a DS e a Maserati, e no WEC com a Peugeot.

Qual é a sua preferência pessoal?

CT: A minha preferência é definida pelo racional do investimento. De acordo com o que sei, todas as disciplinas do automobilismo passam por um ciclo semelhante: começam num nível razoável, crescem, explodem, descem, crescem, explodem, descem… e assim por diante.

Desta forma, o segredo de uma marca é ser capaz de entrar na disciplina quando ainda não está no pico de inflação de custos e pouco antes de «explodir». É melhor entrar num momento de crescimento e receber cada vez mais atenção.

Peugeot 9X8
© Stellantis Peugeot 9X8

Foi o que fizemos com a Peugeot no WEC: regressámos num momento em que o retorno do investimento do ponto de vista de marketing fazia sentido e os custos ainda não tinham disparado.

E a Lancia? O seu renascimento significa que irá regressar ao WRC?

CT: Está a fazer a pergunta a alguém que teve o privilégio de pilotar um Lancia Stratos no Rally de Montecarlo. A minha resposta é, definitivamente, sim. A Lancia também merece correr, no WRC ou noutra categoria.

Porém, é importante lembrarmo-nos de que o desporto automóvel nesta indústria só existe como ferramenta de marketing e que tudo deve seguir uma certa sequência.

Lancia Stratos
© Stellantis Lancia Stratos

Começámos por relançar a Lancia com o novo Ypsilon, e em abril estive em Turim para validar os carros que chegarão na segunda metade desta década.

“Os primeiros passos estão dados. A partir daqui temos de montar um negócio «saudável», caso contrário não teremos os fundos necessários para o regresso à competição.”

Carlos Tavares, CEO da Stellantis

Não imagina quantas pessoas me pediram para fechar a Lancia quando criámos a Stellantis. Quase tantas como o número de pessoas que bateram à minha porta a pedir-me para comprar a Alfa Romeo. E, em ambos os casos, dei a mesma resposta: “Não”.

Já revertemos a situação financeira da Alfa Romeo, que agora é uma marca premium rentável e em crescimento… por isso, o desporto automóvel está no nosso horizonte. Faremos algo semelhante com a Lancia porque isso potencia o valor da marca.

O futuro na Fórmula E

Tem duas marcas, a DS e a Maserati, a competir entre si na Fórmula E. Este é um período de transição enquanto o know-how está a ser transferido da DS para a Maserati? Ou estão na Fórmula E a longo prazo?

CT: O bom senso diz-nos que se um grupo automóvel estiver envolvido com quatro ou cinco marcas na mesma competição e se essas marcas vencerem os rivais externos, terminando as corridas no pódio o tempo todo, o valor dessas vitórias diminui, pelo menos no longo prazo.

A Stellantis tem duas marcas na Fórmula E porque queremos enviar uma mensagem às gerações mais jovens, dizendo-lhes que o automobilismo tem um futuro com emissões zero, com emoção, com velocidade. Na Fórmula E evoluímos a tal ponto que agora podemos correr numa pista normal, o que até há pouco tempo não acontecia.

Acha que os e-Prix em circuito de velocidade são mais adequados para a disciplina, em comparação com as corridas em circuitos urbanos?

CT: Correr com carros de Fórmula E nas cidades gera um posicionamento único e adequado para emissões zero, considerando que as áreas urbanas são as mais afetadas pela poluição e que os pilotos também gostam dos circuitos urbanos, uma vez que lhes permite trabalhar mais nas estratégias de corrida.

Mas também é preciso considerar que os carros da Fórmula E da Geração IV já atingem potências muito altas, em torno de 600 kW (816 cv), portanto a segurança começa a ser um fator sério e os circuitos de velocidade oferecem melhores condições nesse aspeto. Provavelmente a melhor solução será um calendário composto por uma mistura de ambos.

No e-Prix de Misano as suas equipas enfrentaram-se num dos duelos das eliminatórias. Por qual delas estava a «torcer»?

CT: Ainda não tinha chegado ao circuito quando isso aconteceu… mas não faria diferença. Esperaria que a melhor equipa/piloto vencesse. É disso que se trata no automobilismo, não é?

É uma coincidência que ambas as marcas com que compete na Fórmula E sejam premium?

CT: Na verdade, não. Algumas pessoas com uma opinião fortemente tendenciosa dizem que as emissões de CO2 são um problema criado por «pessoas ricas».

DS E-TENSE FE23 GEN3
© DS DS E-TENSE FE23 GEN3

Não vou entrar nesse debate, mas já estamos a vender a «pessoas ricas» veículos de luxo que são livres de emissões, com qualidade premium, ótimas performances, etc.

Mas o automobilismo também gera lucros…

CT: Pode gerar, sim. Pode ajudar uma marca a voltar a ter lucros… se não a matar primeiro. Tornar uma empresa lucrativa beneficia um grande número de pessoas, mesmo que não estejamos a falar de lucros chorudos, mas apenas de uma dinâmica financeira positiva.

Tenho uma responsabilidade para com 250 mil funcionários em todo o mundo, que pretendem manter os seus empregos e sustentar as suas famílias, e tento fazer isso da melhor maneira possível.

Está satisfeito com a aprendizagem cruzada que a Fórmula E e os carros de produção em série estão a conseguir estabelecer em termos de propulsão elétrica e baterias?

CT: Essa é a principal razão pela qual decidimos manter a equipa DS todos estes anos nesta disciplina e com excelentes resultados.

O que aprendemos com este envolvimento foi transferido para os automóveis de estrada de diversas maneiras. Se quando discutimos a próxima geração de elétricos de produção em série da FIAT, Peugeot ou Maserati, definimos o quão eficientes eles devem ser, e eu sinto que não estamos a atingir as metas que deveríamos, muitas vezes digo aos engenheiros responsáveis por esses projetos para irem falar com a equipa de Fórmula E.

Na maior parte das vezes eles têm alguns truques na manga que nos permitem reduzir os kWh/100 km e melhorar a nossa eficiência. Eles têm uma equação muito desafiante para dominar: têm de ser rápidos, com uma quantidade limitada de energia e com uma grande potência.

Maserati MSG racing, no Misano e-Prix
© Stellantis Maserati Tipo Folgore Gen3

Foi por termos conseguido reunir todo este know-how em motorizações elétricas que a Maserati conseguiu entrar na Fórmula E com um nível competitivo alto desde o primeiro dia. É a melhor ferramenta que temos internamente para melhorar a tecnologia dos carros de produção em série.

Mais elétricos superdesportivos? Pode estar para breve

Isso significa que veremos mais superdesportivos elétricos dentro do universo Stellantis ou ainda serão a gasolina?

CT: Temos de estar felizes por uma grande empresa como a Stellantis não ser apenas uma organização fria, financeiramente orientada e muito burocrática, mas ser também capaz de apresentar um projeto como o Alfa Romeo 33 Stradale.

Alfa Romeo 33 Stradale frente

Estou muito orgulhoso que Imparato e a sua equipa tenham conseguido executá-lo dentro do exigente sistema de controlo financeiro da Stellantis, respeitando todas as diretrizes da empresa em termos de rentabilidade, gestão de produto e padrões de qualidade.

O meu diretor financeiro ficou cético quando viu o projeto inicial pela primeira vez e tivemos que trabalhar para o ajustar, mas no final conseguimos. Respeita o nosso código genético e abre caminho para uma futura sportivitá sem emissões, que está no centro dos valores da Alfa Romeo.

Qual é a maior restrição que os carros desportivos elétricos têm hoje?

CT: Claramente o peso da bateria. No dia em que tivermos a química que duplique a densidade energética das células ao mesmo tempo que reduz para metade o peso, o problema estará resolvido.

Não estamos muito longe disso. Eu diria que faltam cinco a sete anos. Depois, poderemos entrar numa pista de corridas e desfrutar de todas as emoções que esperamos num desportivo, sem nos apercebermos de que é elétrico.

Esse tipo de automóvel continuará a ter muita procura por parte das gerações futuras, que parecem estar menos interessadas em automóveis e mais em serviços de mobilidade?

CT: Não é isso que vejo nos estudos que encomendamos. Há cada vez mais jovens a tirar a carta de condução e a tentar comprar um carro, mas em muitas situações é uma questão de acessibilidade, que não está ao nível que deveria estar.

Eles valorizam a sensação de liberdade espontânea de ir a qualquer lugar quando acordam. O que é muito diferente de ter de planear tudo com antecedência… o carro, a viagem, as pessoas, etc. Ter de esperar que todas as estrelas se alinhem para dar certo.

As pessoas dizem-nos que querem comprar um carro mesmo neste mundo caótico. Tenho quatro netos e estou empenhado em dar-lhes a possibilidade de usufruir de uma mobilidade espontânea, limpa, segura e acessível.

Futuro do motor de combustão interna

À medida que a extinção dos motores de combustão se aproxima, ainda faz sentido investir na F1?

CT: Hoje a F1 ainda está assente nos motores de combustão, mas também é uma ferramenta fantástica para desenvolver tecnologia verde. A F1 vai colidir com a proibição dos motores de gasolina em 2035, mas antes disso deve encontrar uma solução para sobreviver.

Se olharmos os números do retorno versus os de investimento, a F1 é uma ferramenta de marketing muito eficaz. Provavelmente a melhor no nosso setor em termos de impacto nos media.

Carlos Tavares, diretor executivo da Stellantis, na Grand Prix Emilia Romagna
© Alfa Romeo Carlos Tavares, diretor executivo da Stellantis, no Grand Prix Emilia Romagna, com Jean-Phillipe imparato, diretor executivo da Alfa Romeo.

Por outro lado, é preciso considerar que nem todos estão a investir o mesmo na F1. Antes da introdução do teto orçamental, as equipas investiam entre 100 milhões de euros e 500 milhões de euros por temporada. Com o teto orçamental temos uma situação mais equilibrada e justa, mesmo que não seja perfeita.

Os combustíveis sintéticos são a solução para que os motores a gasolina possam ter uma nova vida no automobilismo?

CT: Podem ser uma boa solução para o automobilismo, sim, mas principalmente para os 1,3 mil milhões de motores de combustão em circulação em todo o mundo.

Isto só é possível, no entanto, se este atingirem zero emissões — neste momento estão entre 70% a 80% — e um preço que as pessoas possam suportar, o que também não é o caso hoje.

Se estes dois problemas forem resolvidos, os combustíveis sintéticos podem ser uma boa solução. Até porque não vai haver nenhuma proibição dos motores de combustão à escala global.

Qual é a estratégia certa na sua opinião?

CT: Não preciso de me preocupar muito com a estratégia certa em relação aos motores porque a tecnologia é governada por líderes políticos. Eles tomam as «decisões científicas» e tudo o que podemos fazer é viver com elas.

Esta talvez seja uma resposta agressiva que não responde à sua pergunta. A resposta adequada é que a decisão dogmática que foi tomada (proibir os motores de combustão a partir de 2035) está agora a esbarrar na parede da realidade e os únicos fabricantes de automóveis que conseguem lidar com ela são os chineses.

Na Stellantis estamos num bom caminho, mas não vão ser «favas contadas». Como os carros elétricos não podem ser comprados pela maioria das pessoas, a indústria automóvel tem de criar tecnologias que sejam seguras, limpas e acessíveis, encontrando distintas fórmulas para o fazer.

Com 1,3 mil milhões de carros em circulação no nosso planeta, estamos a discutir o dia em que venderemos 20-30 milhões de elétricos com um preço elevado num mercado global anual de 85 milhões de automóveis de passageiros. Estamos a falar de uma gota de água no oceano.

Acha que a União Europeia (UE) proibirá o uso dos motores de combustão em Marrocos? Em Angola, na Venezuela ou na Índia?

Qual é a solução então?

CT: Essa é a resposta de mil milhões de euros que eu não tenho. Mas posso dar-lhe outro exemplo de como as decisões que a UE toma colidem com a realidade.

Na minha vida privada sou produtor de vinho do Porto. Tenho nas minhas vinhas pessoas muito boas e trabalhadoras que utilizam pick-up com 40 anos, movidas por motores Diesel, maioritariamente Nissan. O preço médio que pagaram por essas ferramentas de trabalho oscila entre 1500 euros e 2000 euros.

A Stellantis vai vender uma pick-up elétrica que terá de se enquadrar num cenário competitivo em que os nossos concorrentes vendem os seus modelos por 75 mil euros. Como posso pedir ao meu pessoal do Vale do Douro que se desfaça da sua pick-up Nissan e compre uma RAM elétrica novinha em folha que é, pelo menos, 35 vezes mais cara?

Como vê a desvantagem tecnológica na propulsão elétrica na Europa face à Ásia e como pode ser eliminada?

CT: Não concordo que haja uma desvantagem tecnológica, acho que há uma desvantagem no custo.

No que diz respeito à tecnologia, uma das raras vantagens competitivas que nos restam na «velha Europa» é a educação científica. Dou-vos dois exemplos: sou português e, infelizmente, no meu país natal 30% dos licenciados saem para o estrangeiro em busca de melhores condições de vida, o que significa que as suas competências são utilizadas por outros países.

Por outro lado, nas minhas frequentes visitas a startups na Califórnia, os engenheiros que lá encontro são maioritariamente europeus, muitos deles franceses. Isto resume o problema que a Europa enfrenta: não está a utilizar bem os cérebros das novas gerações que os seus países estão a formar. É por isso que não concordo que a Europa esteja atrasada em termos tecnológicos.

“É perfeitamente normal que tenhamos de competir para triunfar, mas precisamos de condições para o fazer.”

Carlos Tavares, CEO da Stellantis

Esse atraso confirma-se em relação à estrutura de custos porque os nossos governos decidiram criar um sistema que torna impossível ser competitivo em relação ao resto do mundo. É uma escolha legítima, democrática, mas que torna impossível competir com a China e o resto do mundo.

Os chineses têm uma vantagem competitiva em termos de custos de 30% em comparação com a Europa, o que significa que podem vender veículos elétricos quase ao preço dos modelos a gasolina e ainda obter um lucro razoável, algo que nós não conseguimos. É tão simples quanto isso.

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