Notícias Retro? Flavio Manzoni, diretor de design da Ferrari: “objetivo do design deve ser criar algo que não existe”

Entrevista

Retro? Flavio Manzoni, diretor de design da Ferrari: “objetivo do design deve ser criar algo que não existe”

Desde 2010 que Flavio Manzoni é o patrão do design na Ferrari com quem conversamos sobre o que o inspira para criar arte sobre rodas.

Flavio Manzoni, chefe de design da Ferrari

Flavio Manzoni, o homem encarregado de definir as formas de cada Ferrari desde 2010 é alguém com profundo apreço pela arquitetura, música, pintura e escultura que são, de alguma forma, elementos com os quais ele brinca quando desenha um novo supercarro.

Antes de ingressar na Ferrari, andou a saltar entre a Itália e a Alemanha em funções variadas no design automóvel ao longo das últimas décadas, depois da sua formação em arquitetura e design industrial.

Nascido na Sardenha, Itália, em 1965, após concluir os seus estudos em arquitetura (na Universidade de Florença) com especialização em desenho industrial, Manzoni iniciou a sua carreira na Lancia em 1993, onde é creditado por veículos como o Fulvia Coupé concept, o Ypsilon e o Musa, e também foi chefe de design de interiores.

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Flavio Manzoni com Ferrari Monza SP1
Flavio Manzoni é o diretor de design da Ferrari desde 2010.

Em 1999 foi contratado pela SEAT como diretor de design de interiores (mudando-se para Barcelona), onde assinou o Altea, o Leon e os concept cars Salsa e Tango. Mas três anos depois, o Grupo Fiat ofereceu-lhe a possibilidade de dirigir os centros de estilo da Fiat e da Lancia, desafio que aceitou.

Contudo, o Grupo Volkswagen contratou-o de volta como Group Creative Design Director, função que assumiu a partir de 2007.

Finalmente, o jogo de ping-pong entre Itália e Alemanha chegaria ao ponto decisivo quando a Ferrari o nomeou vice-presidente de design, uma oferta a que dificilmente um designer italiano poderia resistir. Permanece, desde então, numa marca que tem orgulho de servir desde 2010.

Centro Stile Ferrari
Centro Stile Ferrari.

Substituindo Donato Coco nesta função, montou um Centro Stile próprio e completamente independente pela primeira vez na história da Ferrari — um impressionante edifício de quatro andares em Maranello, onde cada um dos andares é dedicado a um projeto diferente —, que foi inaugurado em setembro de 2018.

Desde que se tornou o n.º 1 do design da Ferrari, traçou (com a sua equipa ou em colaboração com a Pininfarina) carros como o F12 Berlinetta, o FF, o 599 SA Aperta, o La Ferrari, o J50, o GTC4Lusso, o 488 GTB e 488 Spider, o FXX-K, o 812 Superfast, o Portofino, o SP38 Deborah, o SF90 Stradale, o F8 Tributo, os Monza SP1 e SP2, o 812 Competizione, o 296 GTB e o Daytona SP3.

https://youtu.be/0cgwpigI78k

Ao longo da sua carreira de grande sucesso tem colecionado inúmeros prémios de prestígio, bem como títulos honoríficos, incluindo o Compasso d’Oro (em 2014), o mais antigo e prestigiado galardão em design industrial, pelo F12 Berlinetta.

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Nunca no passado a Ferrari lançou tantos carros diferentes em pouco mais de uma década e nunca antes teve que gerir uma transição tão drástica de sistemas de propulsão, um grande desafio para marcas de supercarros, entre as quais a Ferrari é o maior ícone.

Flavio Manzoni com prémio Red Dot
Durante a sua liderança, a Ferrari tem recebido múltiplos prémios de design, entre os quais os conhecidos Red Dot.

Uma boa ocasião, portanto, para conversar com signor Manzoni.

O que o inspira

São várias as referências de artistas que o influenciam (como Lucio Fontana ou Anish Kapoor) quando inicia um novo projeto. Mas é sempre fascinante tentar perceber como a mente humana dispara neste ou naquele sentido quando em frente a uma folha de papel ou a um programa de software.

Manzoni sorri e admite que “não é fácil saber como o intelecto funciona, porque são muitas as influências durante a criação de um objeto. Depois há os requisitos técnicos, que também se têm que considerar, especialmente em superdesportivos como os Ferrari. Isso significa que boa parte da inspiração é moldada pelos aspetos técnicos do veículo, mesmo que haja sempre lugar para a dimensão artística. E é aqui que a arte, a música, a arquitetura, o design de produto… e muitos outros entram em cena.”

"Há uma bela frase de László Moholy-Nagy, uma das grandes figuras da Bauhaus, que de certa forma sintetiza os meus pensamentos sobre influências e a forma como uma mente criativa as processa: a capacidade da mente é a de ligar rapidamente aspetos que não estão necessariamente ligados, uma espécie de curto-circuito que tem uma forma única de fundir conteúdos e produzir algo realmente único”.

Flavio Manzoni. diretor de design da Ferrari

Design interior assume protagonismo

Sabemos que, historicamente, o design exterior sempre foi mais valorizado por estar mais exposto. No entanto, alguns dos principais diretores de design de hoje são unânimes quando afirmam, hoje, que o design de interiores dos automóveis está a evoluir mais em cinco anos do que nos anteriores 25.

É uma provocação que lanço ao simpático italiano que explica que “o interior do carro era secundário e por volta de 2010 isso começou a mudar completamente. O interior de um carro define o estilo de vida e a tecnologia permitiu-nos dar passos de gigante em relação ao passado recente”.

Admite que a mudança foi de tal ordem que o que fazia “na Lancia, em 1993, como diretor de design de interiores e o que se faz hoje são processos apenas ligeiramente semelhantes. E, no caso da Ferrari, temos um estímulo ainda mais forte para colocar a fasquia extremamente alta, ao mais alto nível da indústria, porque é isso que os nossos clientes esperam que façamos e também para que possamos estar a par da sofisticação que temos no campo da engenharia”.

Designers vs Engenheiros

É um conflito bem conhecido, esse que existe entre os designers e os engenheiros, muitas vezes em trincheiras opostas, a empurrar e defender objetivos que eram, em muitos casos, irreconciliáveis.

Flavio Manzoni com LaFerrari
Flavio Manzoni posa com uma das suas criações mais marcantes, o Ferrari LaFerrari.

Flavio Manzoni chegou a senti-lo, mas adianta que “depende muito do fabricante. Na Ferrari o nível de sinergias é muito alto, o mais alto que experimentei. Aqui, forma-se uma vontade coletiva de chegar a um produto final com qualidade excecional e cada desafio torna-se uma missão para todos. Do ponto de vista do designer, trabalhar com engenheiros na Ferrari não é um problema, mas uma oportunidade”, garante.

Sem dúvida, uma visão bastante mais harmoniosa do que suponha que fosse a realidade, mas será que ao ser arquiteto de formação adota uma postura mais equilibrada, a meio caminho entre princípios matemáticos e estéticos?

O elegante e simpático sardo concede: “o facto de ser arquiteto talvez me dê uma visão diferente em relação aos meus colegas com formação pura de design. Não ajuda ser fanático pela pureza do design porque há muitos compromissos que temos que considerar. Desde pequeno sempre fui apaixonado pela engenharia, pela física, ou seja, pelo lado técnico de cada veículo. Como funcionava um submarino? Como funcionava uma locomotiva a vapor?”

Flavio Manzoni continua: “Mas também é fundamental a funcionalidade de um lugar onde o ser humano permanece bastante tempo, seja uma sala de concertos ou o habitáculo de um veículo. O conforto, a visibilidade, a fruição ideal de um determinado espaço são fatores muito importantes. Essência e estilo, arte e questões técnicas tornaram-se aspetos intrínsecos do design (que é diferente de estilo). Quando desenhamos, devemos fundir beleza e função da melhor maneira possível”.

Diferentes tipos de som e “ruído”

Se um dos principais atributos de um automóvel desportivo é a forma como ele soa e no futuro próximo o som deixar de existir (ou tiver menos protagonismo) podemo-nos interrogar se o design tenderá a preencher esse «espaço» tornando-se mais dramático ou, pelo contrário, deve seguir o padrão da acústica e «baixar o tom».

Ferrari 812 Superfast motor V12

Manzoni não vê “uma ligação tão direta entre forma e som, ainda que desenhar um carro elétrico implica uma abordagem diferente. Além disso, noutras indústrias — como sistemas de áudio hi-fi, máquinas de escrever, etc — cada vez que houve um avanço tecnológico foi acompanhado por um pico de criatividade. Isso é importante porque diferentes tecnologias devem ter diferentes formas de expressão física”.

Flavio Manzoni não deixa de reconhecer a importância do som, especialmente nos Ferrari: “Naturalmente, o som é uma parte muito relevante de um Ferrari e afeta um dos sentidos humanos mais importantes, envolvendo-o visceralmente. Vai continuar a haver som… um novo tipo de som, mas que nos devemos empenhar a fundo para que não soe a falso, ao contrário de alguns exemplos que temos hoje na indústria”, critica. Além do som, temos o “ruído”, entendido como perturbação.

Ferrari 296 gtb em exposição no Pebble Beach Concours d'Elegance
O 296 GTB é dos modelos mais recentes da marca a chegar ao mercado. Aqui em exposição no Pebble Beach Concours d’Elegance, em Monterey.

Nacionalidade e marca

Entre aquilo que define o design automóvel há sempre a questão da nacionalidade do designer ou esta é subjugada pelo ADN de cada marca? Até que ponto um designer francês é capaz de moldar um carro coreano ou um designer japonês pode criar um carro alemão sem ter que passar por um filtro de estilo dentro da marca?

Neste ponto, Manzoni não tem dúvidas que “nesta indústria a cultura estética é muito forte”, mas também reconhece que “há designers que tendem a manter-se fiéis às suas convicções acima de tudo e outros que dão prioridade à interpretação dos valores da marca e os traduzem em formas. Posso dizer que no meu caso trabalhei na Alemanha e tentei assimilar a identidade da marca para a qual trabalhava”.

Outro fator externo que influencia diretamente o design vem da tendência para algumas marcas serem «sensíveis» para o que o cliente de mercados dominantes prefere (como exemplo, as marcas premium alemãs face ao poderoso mercado chinês).

Aqui, o facto da Ferrari ser uma marca «única» — habitualmente muitos dos seus carros estão todos vendidos antes mesmo do início da produção —, permite-lhe uma certa imunidade a esse efeito, como confirma o seu diretor de estilo: “nunca efetuamos «clínicas de clientes» ou pesquisas de mercado para avaliar o que devemos fazer em relação aos novos produtos. Trabalhamos de acordo com os princípios que servem ao nosso ADN, desenvolvidos dentro da empresa com a ideia de criar algo que se torne universal, obviamente.”

"Se prestarmos muita atenção ao que está na moda, a cada momento, falharemos em nossa missão de inventar algo novo. Não iremos escrever novas páginas na história do automóvel, mas apenas adicionar algumas frases às páginas que já estão escritas”.

Flavio Manzoni, diretor de design da Ferrari

Vade retro

Acho que nunca conversei com um designer que apreciasse o termo “retro” em si ou de forma composta (como retro-futurista).

Encontro Ferrari no Pebble Beach Concours d'elegance
A comemoração dos 75 anos da Ferrari este ano foi motivo para reunir muitos modelos do passado e do presente da marca do Cavalinho Rampante no Pebble Beach Concours d’Elegance, ocorrido recentemente.

A ideia de recriar a partir de um modelo/estilo existente em vez de dar origem a algo totalmente novo é algo de que os designers fogem como o diabo da cruz e também é evidente em Manzoni: “as grandes obras-primas são originadas por visões, pela imaginação. Vintage e retro-design, em geral, tornaram-se tendência nos anos 90, porque o passado é algo que dá um certo conforto. Na maioria dos casos, as obras-primas também tiveram sucesso comercial e, portanto, os seus princípios estéticos são fáceis de aceitar.”

Ferrari Monza SP1 e Monza SP2 em Pebble Beach
Memorável. Diversos Ferrari Monza SP1 e Monza SP2 alinhados no Pebble Beach Concours D’Elegance este ano

“Mas o objetivo do design deve ser diferente: criar algo que não existe. Uma coisa totalmente diferente é usar a magia evocativa da tipologia de veículos do passado, como fiz no caso dos Monza SP1 e SP2 e do Daytona SP3. Nunca foi minha intenção fazer um remake, mas sim aplicar uma arquitetura do passado da marca e só porque foram projetos específicos Icona, não modelos de produção em série”, elabora.

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Manzoni gosta, por outro lado, de desafiar os elementos da sua equipa pedindo-lhe que tentem imaginar como um determinado design será visto meio século mais tarde, para os tentar ajudar a criar os clássicos do futuro.

Ferrari Daytona SP3 em circuito, vista 3/4 frente
Ferrari Daytona SP3.

Mas nos tempos em que vivemos, nos quais a vida útil dos produtos é reduzida e a obsolescência acelera, essa é uma linha de pensamento que talvez ainda possa ser aplicada na Ferrari porque se trata do fabricante de desportivos de luxo mais icónico do mundo.

Designer e gestor

Em grandes empresas multinacionais com um punhado de marcas, o papel do designer no topo já não é o de desenhar, mas sim gerir equipas, dirigir a evolução do estilo, participar em reuniões com a administração, etc.

Mas Flavio Manzoni como diretor de design da Ferrari, faz questão de continuar a desenhar, porque considera ser “importante estar atento a essas duas vertentes. Por um lado, a comunicação que vem das formas que criamos, por outro lado, a comunicação verbal”.

 

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Como nos explica, “Muitos líderes de estúdios de design são muito fortes em termos de comunicação verbal, mas acredito que o papel do vice-presidente de design também deve ser o de um professor, um tutor, alguém capaz de mostrar como desenhar, como moldar, como dar vida a um objeto. Ser capaz e encontrar tempo para desenhar é vital no meu trabalho.”

E quando lhe pergunto se o faz em papel ou no computador, nem pestaneja quando diz “em ambos. O computador ajuda muito a ser muito mais preciso e rápido. Com o software 3D podemos perceber imediatamente o equilíbrio de formas e proporções que são fundamentais num Ferrari. Mas não se deve esquecer o papel, o lápis, com o qual o cérebro humano tem uma ligação mais direta”, justifica.

Flavio Manzoni à mesa a desenhar

Manzoni style?

Em qualquer profissão que envolve criatividade, fazê-lo com marca “de autor” acrescenta um certo prestígio. O diretor de design da Ferrari não se sente em posição de afirmar que isso acontece nos modelos que já desenhou, mas admite que “é possível identificar uma abordagem específica. A conjugação de forma e função ao mesmo tempo que acrescenta alguma poesia, alguma arte na receita”.

"Um carro é uma combinação de design e escultura, e é isso que eu faço de uma forma muito honesta, tentando materializar a essência do projeto. Pode parecer uma coisa muito filosófica, mas na verdade, é o que fazemos todos os dias”.

Flavio Manzoni, diretor de design da Ferrari

E um dos Ferrari mais aguardados da história é, sem dúvida, o SUV Purosangue com apresentação agendada ainda para 2022. E que, garantidamente colocou desafios totalmente inéditos para quem teve a responsabilidade de definir os seus traços.

Ferrari-Purosangue-TEASER-CLARO
Teaser do primeiro SUV da Ferrari, o Purosangue.

Flavio Manzoni destaca “a preocupação de desenhar um veículo que fosse, acima de tudo, um Ferrari, acertando nas proporções, no equilíbrio. Algo que sempre acontece em cada novo modelo, mas aqui jogando com o espaço, a versatilidade e as especificidades do Purosangue (que é como lhe chamamos internamente) totalmente diferentes de qualquer Ferrari da história.

Flavio Manzoni pessoal

Música: “Keith Jarrett, um bom exemplo da capacidade humana de imaginar o que não existe e um verdadeiro virtuoso técnico (a sua alma criativa emerge de suas obras); Toots Thilemans, o belga que dominava a gaita de beiços encantada”.

Arte: “Van Gogh — quando era criança, devorei todos os livros sobre ele; Anish Kapoor — a sua última exposição em Veneza, com uma instalação totalmente em negro, desafia as leis da física”.

Gastronomia: “Cozinha sarda (da Sardenha)”.

Destino de férias: “Praias da Sardenha… Não fui contratado pelo departamento de turismo da Sardenha, mas como não tenho tempo para ir lá, sonho com isso…”

Desporto: “Fórmula 1”.

Personalidades que gostaria de ter conhecido:
“Tantos… mas vamos lá: Einstein, um cérebro pelo qual adoraria ser contaminado; Da Vinci, daria tudo para ter tido a hipótese de o conhecer; Rachmaninoff, a genialidade na forma de pianista russo”.