Notícias União Europeia vai proibir reparação de carros antigos. Verdade ou mentira?

Legislação

União Europeia vai proibir reparação de carros antigos. Verdade ou mentira?

Os rumores de que a União Europeia vai proibir a reparação de carros antigos ganharam tração nas redes sociais. Questionámos a UE para saber a verdade.

renault_clio_II
© Renault

Nos últimos dias foram vários os rumores a sugerir que a União Europeia (UE) ia proibir a reparação de carros antigos, «incendiando» por completo as redes sociais.

Questionada pela Razão Automóvel, fonte oficial da União Europeia confirmou que “as alegações de que a UE pretende proibir a reparação de automóveis antigos não se baseiam na realidade”.

Em causa está a proposta do Parlamento e do Conselho Europeu, apresentada em 7 de julho de 2023, relativa aos requisitos de circularidade para a conceção de veículos e a gestão dos veículos em fim de vida.

Isto porque todos os anos, mais de seis milhões de veículos chegam ao fim da sua vida útil e são tratados como resíduos na Europa. E de acordo com a UE, “o manuseamento inadequado dos veículos em fim de vida gera poluição e custa dinheiro”.

Por isso mesmo, com esta nova proposta, a UE quer «apertar o cerco» aos chamados veículos em fim de vida e impedir que estes automóveis sejam reparados e colocados à venda no mercado de usados.

O que diz a Comissão Europeia?

Num briefing realizado esta segunda-feira, 15 de janeiro, em Bruxelas (Bélgica), Adalbert Jahn, porta-voz da Comissão Europeia para o ambiente, assuntos marítimos e transportes, fez questão de esclarecer este tema, dizendo:

Trata-se exclusivamente de abordar o caso de veículos que já atingiram o fim de vida útil. Não existe nada neste regulamento para impedir a reparação de automóveis que podem ser reparados.

Adalbert Jahn, porta-voz da CE para o ambiente, assuntos marítimos e transportes

“Também não há nada neste regulamento que impeça os proprietários de automóveis de tentar ou mandar repará-los, seja qual for o seu estado”, acrescentou Adalbert Jahn, antes de explicar:

Só no caso de um carro estar a ser vendido é que existem regras neste regulamento que iriam permitir às autoridades determinar se um carro é realmente um carro, ou se na verdade já não é um carro, mas sim um veículo em fim de vida. E nesse caso, tem de ser tratado de acordo com as regras dos resíduos.

Adalbert Jahn, porta-voz da CE para o ambiente, assuntos marítimos e transportes

O que é um veículo em fim de vida?

De acordo com o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), um “veículo em fim de vida (VFV) corresponde genericamente aos veículos que não apresentando condições para a circulação, em consequência de acidente, avaria, mau estado ou outro motivo, chegaram ao fim da respetiva vida útil, passando a constituir um resíduo”.

A saber
Segundo dados da Eurostat, em 2021 existiam em Portugal um total de 117 997 veículos em fim de vida, sendo que na União Europeia este valor ascendeu a 5,67 milhões nesse mesmo ano.

No Anexo 1 da proposta relativa aos requisitos de circularidade para a conceção de veículos e a gestão dos veículos em fim de vida, a Comissão Europeia dedica duas páginas a definir os critérios que determinam o que é um veículo em fim de vida e quais os critérios de avaliação da reparabilidade dos veículos.

De acordo com este documento, um veículo é tecnicamente irreparável se preencher pelo menos um dos seguintes critérios:

  • Foi cortado em pedaços ou foram-lhe retirados elementos;
  • Foi soldado ou selado por espuma de isolamento;
  • Foi completamente queimado até à destruição do compartimento do motor ou do habitáculo;
  • Foi mergulhado em água até um nível superior ao painel de bordo;
  • Um (ou vários) dos seguintes componentes do veículo não podem ser reparados nem substituídos:
    • Componentes de ligação ao solo (por exemplo pneus e rodas), suspensão, direção, sistema de travagem e respetivos componentes de comando;
    • Fixações e articulações dos bancos;
    • Airbags, pré-tensores, cintos de segurança e respetivos componentes periféricos;
    • Casco e quadro do veículo;
  • Os componentes estruturais e de segurança do veículo apresentam defeitos técnicos irreversíveis, por exemplo envelhecimento do metal, múltiplas rachas na pintura ou corrosão perfurante excessiva, não podendo ser substituídos;
  • A reparação do veículo exige a substituição do motor, da caixa de velocidades, da carroçaria ou do conjunto do quadro, resultando na perda da identidade original do veículo.

A somar a isso, o referido documento diz-nos que um “veículo é economicamente irreparável se o seu valor de mercado for inferior ao custo das reparações necessárias para o restituir, na União (Europeia), a um estado técnico suficiente para obter um certificado de inspeção técnica no Estado-Membro no qual estava matriculado antes da reparação”.

carros-abandonados-jardim
Imagem de Franck Barske por Pixabay

Com base na mesma nota oficial, um veículo pode ser considerado tecnicamente irreparável nos seguintes casos:

  • Foi mergulhado em água até um nível inferior ao painel de bordo, tendo o motor ou o sistema elétrico ficado danificados;
  • As portas foram separadas da carroçaria;
  • Derrama combustível ou emite vapores de combustível, representando um risco de incêndio e explosão;
  • Houve fuga de gás do sistema de gás liquefeito, representando um risco de incêndio e explosão;
  • Houve derrame de líquidos necessários ao seu funcionamento (combustível, fluido dos travões, líquido anticongelante, ácido da bateria, líquido de arrefecimento), representando um risco de poluição da água; ou
  • Apresenta desgaste excessivo dos seus componentes de travagem e de direção.

A este nível, há uma ressalva na proposta caso o veículo preencha uma destas condições, mas seja na mesma reparado. Nesse caso deve ser realizada uma avaliação técnica do veículo de modo a determinar se o seu estado técnico é suficiente para obter um certificado de inspeção técnica.

Mas há mais. Segundo a Comissão Europeia, os seguintes critérios podem igualmente ser utilizados, como justificação suplementar, para determinar se um veículo usado é um veículo em fim de vida:

  • Ausência de meios que permitam identificar o veículo, nomeadamente o número de identificação do veículo;
  • Proprietário desconhecido;
  • Decorreram mais de dois anos a contar da data na qual devia ter sido realizada a inspeção técnica nacional obrigatória;
  • Não está protegido de forma adequada contra danos durante o armazenamento, o transporte, a carga e a descarga; ou
  • Foi entregue para tratamento a um ponto de recolha autorizado ou a uma instalação de tratamento de resíduos autorizada.
Sucata automóvel
Imagem de Alain GENERAL por Pixabay

Objetivos da diretiva: facilitar a reutilização e a reciclagem

Estudos recentes da UE mostram que para “alcançar os objetivos da UE em matéria de clima e resiliência, a produção de veículos deve seguir uma via sustentável e descarbonizada, com uma menor dependência dos recursos primários”, como pode ler-se na íntegra no site oficial da Comissão Europeia.

Recorde-se que o setor automóvel na Europa representa 10% do consumo total de plásticos, o que corresponde a seis milhões de toneladas por ano. A juntar a isso, este setor é responsável por 17% da procura de aço, 42% da obtenção de alumínio e de 6% do consumo de cobre.

Curiosidade
Prevê-se que a proposta de regulamento conduza a uma redução anual de 12,3 milhões de toneladas de equivalente CO2 em 2035, o que equivale a 2,8 mil milhões de euros.

A eletrificação dos veículos vai aumentar ainda mais este consumo e vai adensar a necessidade de matérias-primas como as terras raras, pelo que para a UE, “tornar os novos veículos mais sustentáveis e circulares é essencial para fazer face às nossas dependências, tal como reduzir o impacto ambiental associado à extração e transformação de materiais primários utilizados nos veículos, e facilitar a reutilização e a reciclagem de veículos que atinjam o fim da sua vida útil”.

Controlar as exportações de usados

A União Europeia é atualmente o maior exportador mundial de veículos usados. Em 2020, o número de veículos usados exportados para países terceiros ascendeu a 870 000 unidades, no valor de 3,85 mil milhões de euros.

carro abandonado ferrugem
Imagem de J W. por Pixabay

Embora os veículos em fim de vida sejam considerados resíduos perigosos e a sua exportação da UE para países não membros da OCDE seja proibida, o mesmo não se verifica no caso dos veículos usados que não atingiram formalmente a fase de resíduos.

Para resolver estas situações, a UE sentiu necessidade de “clarificar a definição de veículos em fim de vida” e de introduzir “critérios obrigatórios que possam permitir distinguir mais facilmente os veículos usados dos resíduos”.

Colocar fim à fraude

Na sua intervenção, Adalbert Jahn, porta-voz da Comissão Europeia para o ambiente, assuntos marítimos e transportes, abordou esta questão e foi peremptório:

O objetivo dos critérios para determinar o que é um veículo em fim de vida e o que é um veículo que pode ser reparado é para acabar com um tipo específico de fraude.

Adalbert Jahn, porta-voz da CE para o ambiente, assuntos marítimos e transportes

“Sabemos que existem veículos em fim de vida que estão a ser exportados da União Europeia e que são vendidos basicamente como sendo carros reais, ou seja, carros de segunda mão, embora na verdade não estejam aptos, de modo algum, a andar na estrada”, explicou Adalbert Jahn.

Além dos danos económicos e ambientais envolvidos, de acordo com Adalbert Jahn, isto cria um “campo de atuação desequilibrado para os operadores que cumprem as regras”.