Opinião Numa indústria automóvel em crise os chineses têm as costas largas

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Numa indústria automóvel em crise os chineses têm as costas largas

A China tem sido apontada como uma das causas para a crise na indústria automóvel europeia, mas os problemas são mais profundos.

Volkswagen Gold na linha de produção, com bandeira chinesa a cobrir a imagem
© Razão Automóvel

Do ponto de vista anatómico, os chineses estão longe de ser o povo com as costas mais largas do mundo, mas quem ouvir as atuais queixas da indústria automóvel ocidental pode bem achar que esse é o caso.

A indústria automóvel europeia, em especial, está sob forte pressão, mas as razões para a queda abrupta dos resultados financeiros dos vários fabricantes não são apenas a alavancagem dos fabricantes chineses permitida pela mudança para a eletromobilidade.

Do que não restam dúvidas, é que estes são tempos difíceis para esta indústria, seguramente os mais difíceis desde a crise financeira que começou em 2008/2009. Já nessa altura, não foram apenas as grandes corporações como a General Motors que faliram nos EUA e só puderam ser salvas com o apoio do governo norte-americano. Esta “coisa” da globalização tem vários lados negativos.

Um deles, o facto de os sintomas de crise se espalharem por osmose, como foi o caso no final da primeira década deste milénio, com uma crise espoletada pela bolha imobiliária nos Estados Unidos e que depois se propagou e tornou transversal a praticamente todas as atividades económicas e industriais.

Os problemas atuais, no contexto deste setor automóvel, podem ser ainda mais graves e duradouros do que nesse período. A Europa, enquanto localização industrial, tem enfrentado grandes desafios há muitos anos. Mas os lucros chorudos colhidos no mega-mercado da China — o maior do mundo, com quase tantos carros vendidos por ano como Europa e EUA juntos — ajudaram a disfarçar as dificuldades.

Esse disfarce não serviu apenas às marcas premium, que vendiam até mais de 1/3 de toda a sua produção na China. Agora que muitos dos fabricantes europeus enfrentam problemas no mercado chinês, ao mesmo tempo que os fabricantes locais ganham protagonismo, as divergências estão a vir ao de cima.

Um exemplo com números que o ilustram: o Grupo Volkswagen subiu vendas e faturação nos primeiros nove meses de 2024, face a igual período do ano passado na sua atividade nas Américas e na Europa, mas a queda de 12% nas vendas na China, arrastou o resultado global para números negativos. 

Fábrica de Wolfs
© Volkswagen A Volkswagen tem estado no centro da crise que está a afetar a indústria automóvel europeia.

Já se sabe que a indústria automóvel permite margens de lucro sobre a faturação que são pouco mais que residuais — compare-se com a Apple, que desistiu deste negócio antes de entrar, que está habituada a ter ganhos a rondar os 50% sobre cada iPhone vendido. Ou seja, quase 10 vezes mais do que a maioria das marcas de automóveis conseguem por carro.

Um dos grandes problemas tem a ver com os elevados custos de produção, inflacionados pelos salários elevados, sendo o caso da Alemanha, o motor da indústria europeia, um dos mais desafiantes. É onde a produção de veículos ou o fabrico de componentes são mais dispendiosos do que em qualquer outro lugar do mundo.

Os custos salariais elevados, pensões avultadas e benefícios sociais correspondentes, são luxos que puderam ser mantidos porque as fábricas europeias conseguiam níveis de utilização da capacidade instalada acima dos 80% ou, nos casos de maior sucesso, de 90%. Essas percentagens têm estado a cair.

O número de turnos têm sido reduzidos e temos visto, com cada vez mais frequência, paragens de dias e até semanas em linhas de produção. Agora começam a chegar as notícias dos primeiros encerramentos de fábricas.

Os trabalhadores da indústria automóvel europeia ganham mais do que nunca em comparação com outras indústrias. Mesmo com uma fraca utilização das fábricas ou interrupções de produção, os sindicatos negociaram, ao longo dos tempos, benefícios de tempo de trabalho reduzido muitas vezes superiores a 80% e situações de absentismo muito favoráveis.

Isso tem reflexos diretos na margem de lucro de cada automóvel fabricado. Ao ponto de um automóvel, quer seja a combustão ou elétrico, ser 25% a 40% mais barato de produzir na China com níveis de qualidade que são hoje equivalentes.

O desenvolvimento de um novo veículo ou de novas tecnologias pode custar vários milhares de milhões de euros. Quando um fabricante de automóveis desenvolve um carro a partir do zero (nova plataforma), a fatura do planeamento — inclui a capacidade da fábrica, o design, a tecnologia, os fornecedores, a formação dos concessionários, etc, —, pode oscilar entre dois a quatro mil milhões de euros.

Se o veículo for lançado em várias regiões do globo, tiver várias instalações de produção globais e for vendido com uma margem correspondentemente elevada aos fabricantes e concessionários, poderá facilmente demorar três anos a cinco anos, até que o investimento seja recuperado e o novo modelo comece a dar lucro.

Em alguns casos, poderá mesmo ser necessário investir nos fornecedores ou em novas instalações de produção, o que é uma constante nos novos modelos 100% elétricos. Se os investimentos forem particularmente elevados e os volumes de vendas forem inferiores ao previsto no plano de negócio, as margens não chegam para cobrir os custos. Esse é o principal problema que está a acontecer na mudança para o automóvel elétrico.

bateria Volvo Northvolt
© Volvo Cars

Num veículo híbrido plug-in ou elétrico, a bateria é uma parte tão cara do custo total do veículo que a margem de lucro pode, simplesmente, não existir. Em alguns casos, o fabricante pode estar a perder dinheiro por cada veículo vendido.

Isto não é tudo. Os regulamentos ambientais e de segurança estão cada vez mais exigentes, o que também faz com que os veículos sejam cada vez mais caros, maiores e mais pesados. Nem todos os custos podem ser transferidos para os clientes, uma vez que algumas alterações — por exemplo nas emissões e na segurança —, são menos perceptíveis pelo cliente, não deixando de implicar investimentos adicionais por parte de que os fabrica.

Em suma, se a ameaça vinda da China é real, as costas dos chineses não são suficientemente largas para cobrir problemas de fundo da indústria automóvel europeia que nunca foram devidamente abordados. As consequências só agora começam a ser sentidas, mas esta poderá ser também uma oportunidade para mudar.