Opinião Itália e Stellantis em guerra aberta. Quem ganha com isto?

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Itália e Stellantis em guerra aberta. Quem ganha com isto?

A guerra entre a Stellantis — guarda-chuva de 15 diferentes marcas de automóveis liderado pelo português Carlos Tavares —, e o governo italiano não dá sinais de trégua.

Alfa Romeo Junior, detalhe frente
© Alfa Romeo

Os antecedentes que se foram empilhando no último ano prometiam um animado confronto entre a Stellantis e o governo italiano na celebração mundial dos 125 anos da Fiat em Turim. E onde presenciei, de facto, um espetáculo de agressividade sem precedentes (entre políticos e empresários), ao qual só faltou mesmo um ringue e umas luvas de boxe para poder ser considerado surreal.

A Adolfo Urso, o ministro do empreendimento e do Made in Italy (é, realmente, como se chama o seu ministério…), não lhe têm agradado os planos de deslocalização industrial de alguns projetos de automóveis italianos. Especialmente o acabadinho de revelar crossover compacto da Alfa Romeo, que é um dos poucos na história da marca do trevo a ter berço fora de Itália (Tychy, Polónia) desde 1910, ano da sua criação.

Nos bastidores o conflito já eclodira, mas só se tornou público quando a Alfa foi proibida de usar o nome “Milano”, já depois da apresentação mundial do carro, numa decisão intencionalmente tardia para gerar pressão adicional sobre a Stellantis. Esta limitou-se a trocar de nome. Milano passou a Junior, como era o teor do comunicado oficial da Alfa Romeo, também ele a transbordar agressividade: “Não pode ser Milano? Ok, Junior então”.

Ficava clara a guerra sem trincheiras entre Itália e a Stellantis, entre Urso e Tavares, com outros episódios (antes, durante ou depois) deste teste de colisão frontal.

Em maio, por exemplo, a polícia financeira engavetou umas dúzias de Fiat Topolino acabados de atracar no porto de Livorno, oriundos de Marrocos onde são montados. Tudo por causa da bandeirinha de Itália (colada na porta), que as autoridades não aceitaram, por “dar a entender” serem artigos feitos em Itália. Algo proibido por uma lei de 2003 que, por exemplo, fez com que só o queijo feito em Parma se pudesse chamar Parmigiano Reggiano.

Já em julho, ficámos a saber que o sr. Urso está a oferecer duas marcas italianas na posse da Stellantis (Innocenti e Autobianchi) a fabricantes chineses de automóveis, para instalarem fábricas em Itália e reavivarem estas marcas que tiveram sucesso dos anos 60 a 80. Uma lei recente — de dezembro passado (!) — permite que marcas inativas há mais de cinco anos em Itália possam ser ressuscitadas desde que a sua produção seja feita naquele país.

Autobianchi A112 Abarth
© Autobianchi Autobianchi A112.

No caso dos Topolino, as bandeirinhas tricolores lá tiveram que ser arrancadas, mas em relação às possíveis fábricas chinesas (ou outras, que o governo italiano quer que se instalem no país, para acabar com o monopólio da Stellantis), Tavares já reagiu com a ameaça direta: “se os chineses instalarem fábricas em Itália é bem provável que tenhamos que fechar alguma(s) das nossas”. 

Era este o contexto que definia os semblantes carregados de Urso, Tavares, François (CEO da Fiat/Abarth e diretor global de marketing da Stellantis) e Elkann (chairman da Stellantis e CEO da Exor, a holding da família Agnelli, que fundou a Fiat) neste dia que deveria ser de celebração total. Afinal, 125 anos é muito tempo e a história de Itália e da Fiat fundem-se e confundem-se.

O dia não melhorou nada à medida que os discursos avançavam: “A República Italiana é fundada em trabalho, não em lucro”, proferia Urso, logo a abrir as hostilidades, encorajado pelo facto de ser esse o parágrafo inicial da Constituição italiana; “Se as empresas tiverem prejuízos, fecham e as pessoas perdem os seus empregos”, retorquia Tavares.

Logo secundado pelos seus mais próximos acólitos, como John Elkann, lembrando que “até aos anos 50, 2/3 da faturação da empresa era feita fora de Itália”; e Olivier François, “sempre produzimos fora de Itália, como nos casos dos Fiat 124 e 127 que foram montados em muitos países, do Fiat 500L, na Sérvia, ou do Fiat Panda que em 2000 era feito em Tychy (Polónia) e em 2024 é produzido em Pomigliano d´Arco em Itália”.

Outras declarações a reter: “na Stellantis temos marcas líderes em três continentes, um em cada quatro carros citadinos na Europa são Fiat (um em cada dois em Itália), somos a terceira marca que mais vende elétricos na Europa e temos oito novos projetos industriais a arrancar neste país”. Uma súmula de factos feita por Tavares para provar o sucesso e a continuação do investimento da Stellantis em Itália.

Elkann, o herdeiro do império da Fabbrica Italiana Automobili Torino, foi mais longe: “cheguei a temer que a empresa que a minha família fundou não sobrevivesse, mas a Stellantis deu-nos um horizonte de futuro”.

Sr. Urso: sem querer estar a meter a foice em seara alheia, se as marcas italianas da Stellantis não forem capazes de triunfar no cada vez mais competitivo cenário da indústria automóvel (o que só será possível se as empresas forem geridas com racionalidade, entre muitas outras coisas…) elas deixarão de existir e a taxa de desemprego e bem-estar dos seus eleitores irão ter enormes impactos diretos. Aliás, algumas delas já nem andariam por cá se a fusão com o Groupe PSA e o toque de Midas de Carlos Tavares não as tivesse tirado da iminente falência.

FIAT Grande Panda - 3/4 de frente
© FIAT No 125.º aniversário da Fiat, celebrado na fábrica de Lingotto, Itália, a marca revelou o Grande Panda… Que vai ser produzido na Sérvia.

Talvez isso seja mais importante e vital para centenas de milhares de italianos — 40 000 funcionários, só da Fiat em Itália, e respetivas famílias —, do que a sua retrógada invocação do primeiro artigo da Constituição da República Italiana.

Não merecerá Tavares, e as suas equipas, o benefício da dúvida por terem salvo marcas de automóveis históricas quando ficaram responsáveis por elas? Primeiro a Peugeot, a Citroën e Opel (pós-2017), e depois Fiat e Alfa Romeo (2021) que estavam «presas por arames». Afinal, conseguiram que o grupo tenha alcançado, a nível global, as maiores margens de lucro sobre faturação, sempre na casa dos dois dígitos percentuais. Isto é único na indústria automóvel atual e ainda mais difícil por estar a ser alcançado com uma maioria de marcas generalistas.

No caso da Alfa Romeo, os lucros em 2023 foram de 500 milhões de euros e isto apenas com 70 500 carros vendidos o ano passado. A recuperada saúde financeira é ainda mais notável se tivermos em conta que a Alfa não tinha lucros há mais de uma década e que desbaratou investimentos chorudos. O último dos quais de cinco mil milhões de euros pela administração Marchionne que prometia vendas de meio milhão de carros no final da década passada e que nunca passou dos 120 000 (nem foi capaz de estancar a sangria financeira que quase levou à extinção da marca ou à sua venda).

Uma visão romântica do mundo é aquela em que todas as marcas produzem no seu território de origem e alimentam unicamente a economia do país. Dessas visões românticas está o cemitério de marcas de automóveis cheio.

Mas no mundo dos negócios em pleno século XXI, a maior parte das decisões tem de ter uma componente de racionalidade e de equilíbrio, mesmo que isso afaste as marcas das suas origens, e sempre com um bem maior em vista. Não será por isso que o ministério que o Sr. Urso tutela tem, como complemento de nome, “Made in Italy” e não “Prodotto in Italia”?

E, por outro lado, não seria melhor gastar estas energias aplicadas em perseguir a Stellantis na implementação de políticas que promovam a criação de uma infraestrutura de carregamento de carros elétricos e de incentivo à sua compra? Em Itália, a 10.ª maior economia do mundo e a quarta maior da Europa, a quota de elétricos é de 5%. Em Portugal é o triplo.

Porta de carregamento do Fiat 500
© Fiat Fiat 500.

É que os seus amigos políticos de Bruxelas dizem que dentro de nove anos já não se fazem mais carros com motor de combustão. Talvez esteja na altura de acordar

Veja-se o que aconteceu em junho. O governo italiano introduziu um programa de incentivos à compra de elétricos no valor de 200 milhões de euros. Esgotou em nove horas(!), duplicando as vendas de elétricos no país face a junho de 2023. Está mesmo na altura de acordar

Porque no final, tal como em muitas outras guerras, poderá não haver vencedores. Apenas vencidos: os italianos e a economia italiana.