Há momentos na história em que a realidade supera a ficção. Acontecimentos tão incríveis que se não fossem reais, pareceriam impossíveis — ou pouco credíveis, na melhor das hipóteses.
A 34ª edição das 24 Horas de Le Mans (1966) é um desses momentos. Um momento em que o génio humano contrariou todas as probabilidades e escreveu uma das mais bonitas páginas da história do desporto automóvel.
Quando três Ford GT40 cruzaram a linha da meta da 34ª edição das 24 Horas de Le Mans e terminaram o domínio da Ferrari nesta prova que acontecia desde 1960.
Ford quase comprou a Ferrari
A história das 24 Horas de Le Mans de 1966 começou antes da corrida… começar. Aquilo que começou por ser uma proposta de aquisição da Ferrari pela Ford, acabou com uma «disputa» pela supremacia no desporto automóvel, lado a lado, no circuito de La Sarthe.
Na realidade foi uma Ferrari em dificuldades que começou a procurar interessados na sua aquisição. Um interesse que chegou aos ouvidos de Henry Ford II, neto do fundador da Ford e naquela época responsável máximo pela marca com o seu nome de família.
Após regressar ao mundo da competição automóvel, com sucesso, em 1962, Henry Ford II ambicionava mais e sonhava com a conquista de Le Mans. Ter uma marca como a Ferrari no domínio da Ford — já na altura um nome reverenciado tanto na Fórmula 1 como nos GT — seria uma mais valia impossível de ignorar.
As negociações entre Dearborn e Maranello — as cidades que servem de sede à Ford e Ferrari — iniciaram-se em 1963 e quase chegaram a «bom porto».
A Ford esteve efetivamente a passo de adquirir a Ferrari, mas um intransigente Enzo Ferrari recuou à última hora.
Ainda hoje o contrato não assinado da compra da Ferrari permanece nos arquivos da Ford.
O falhanço das negociações entre a Ford e a Ferrari, não contribuíram nada para a boa disposição de Henry Ford II. Esta acabou por ser uma das principais motivações para a Ford iniciar um dos projetos mais ambiciosos da sua história: desenvolver um carro capaz de bater os Ferrari no seu próprio domínio, a competição automóvel.
Carrol Shelby, o arquiteto do Ford GT40
Se o objetivo da Ford era bater a Ferrari em Le Mans, iria ser preciso um novo carro, desenvolvido totalmente de raíz.
O domínio da Ferrari já acontecia com os novos protótipos de motor central traseiro — uma tecnologia relativamente recente naquela época — e que tomava progressivamente o lugar dos protótipos com motor dianteiro. Por isso, se a Ford queria vencer, esse teria de ser o caminho.
A Ford não começou totalmente do zero. Fez um acordo com a Lola, que na altura já corria com o avançado MK6 GT — um protótipo também de motor central traseiro — que equipava motores V8 da… Ford. As origens do icónico GT40 remontam a este modelo.
Após a compra de dois chassis do MK6, dava-se início ao desenvolvimento do Ford GT40 original, ainda em Inglaterra. O primeiro exemplar, o GT/101, foi revelado a 1 de abril de 1964.
Contudo, apesar da rapidez que demonstrava em circuito, o GT40 revelou ser pouco fiável em longas distâncias, acumulando desistências nos primeiros anos do projeto. A caixa de velocidades era a maior dor de cabeça.
Os resultados desapontantes de 1964 levaram a Ford a passar o desenvolvimento do GT40 à Shelby American de Carrol Shelby.
Carrol Shelby já era um nome incontornável no mundo automóvel. Mas ao contrário do que vemos, por exemplo, no filme Ford V. Ferrari (2019), a sua relação tanto com Henry Ford II como com Lee Lacocca, responsável de vendas e marketing da Ford, era bastante mais saudável. Afinal de contas, a Ford era a fornecedora oficial dos motores V8 com que a Shelby American equipava os seus lendários modelos Cobra.
Por outro lado, o interesse de Shelby em Le Mans também era grande. Afinal, o próprio venceu as 24 Horas de Le Mans em 1959, quando corria para a Aston Martin. E regressaria a Le Mans, agora como construtor, em 1963, primeiro com uma versão fechada do Cobra e em 1964 com o muito mais aerodinâmico Daytona Coupé.
Curiosamente, o Shelby Daytona Coupé estreou-se em Le Mans no mesmo ano que os GT40, mas teve melhor sorte, ganhando na sua classe e terminando em quarto à geral, batendo os dominadores Ferrari 250 GTO — uma primeira vitória da Ford sobre a Ferrari, pois o motor V8 do Daytona era da Ford.
O Ford GT40, no entanto, era o único com potencial para uma vitória à geral. Entre as muitas revisões e alterações operadas, Shelby também trocou o 4.2 V8 dos GT40 MK I de 1964 pelo 4.7 V8 dos Cobra e parte das modificações efetuadas foram no sentido de receber um enorme 7.0 V8, que daria origem ao (conhecido como) GT40 MK II.
Os primeiros resultados não tardaram. Na primeira corrida do GT40, em 1965, o desfecho foi uma vitória categórica nos 2000 km de Daytona. Mas em Le Mans, nova desilusão, devido a problemas mecânicos.
Os Ferrari oficiais não tiveram melhor sorte, com os novos 330 P2 a também mostrarem fragilidades ao nível da transmissão, com a vitória nas 24 Horas de Le Mans de 1965 a caber à equipa privada NART (North American Racing Team) e ao mais fiável Ferrari 250 LM.
Finalmente, a vitória
Com dois anos de desenvolvimento, o GT40 acabou por ganhar a tão desejada resistência — após várias opções, a escolha pela caixa de quatro velocidades da Kar Kraft mostrou ser mais resiliente — e refletiu-se no domínio dos circuitos em 1966. Fosse qual fosse a prova em que participasse, o GT40 saía sempre vencedor.
Ganhou algumas das provas mais importantes do ano, como as 24 Horas de Daytona, as 12 Horas de Sebring e, claro está, as 24 Horas de Le Mans e deu à Ford a vitória no campeonato WSC (World Sportscar Championship).
Para garantir a vitória em Le Mans a Ford não se poupou a esforços. No arranque para esta mítica prova, a marca americana contava com 14 unidades do Ford GT40, divididos entre equipas oficiais e privadas.
Por seu turno, a Ferrari surgia com um novo protótipo: o 330 P3. Um modelo que prometia «arrasar» toda a concorrência mas que acabou por ser batido em toda a linha. Fruto de um desenvolvimento insuficiente, nenhum Ferrari 330 P3 chegou ao fim da corrida. Aliás, o Ferrari melhor posicionado, um 275 GTB privado, ficou-se pela oitava posição, com quatro Porsche 906 a separá-lo dos três Ford GT40 que dominaram o pódio.
Uma vitória que soube como poucas a Henry Ford II. O presidente da Ford esteve nas 24 Horas de Le Mans de 1966, tendo sido o próprio a dar o «tiro de partida» para a corrida. Pela primeira vez uma equipa norte-americana com um carro norte-americano conquistava a vitória absoluta na prova e ostentava a marca da oval azul.
Apesar da vitória clara da Ford e do GT40, esta acabou por estar envolta em controvérsia, muito por «culpa» da imagem de capa que abre este artigo.
Os três GT40 a cruzar a meta juntos foi o resultado de uma decisão dos responsáveis da marca norte-americana e que acabaria por dar a vitória à dupla Bruce McLaren/Chris Amon e não a Ken Miles — um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do GT40 — e Denny Hulme, apesar do avanço que estes tinham na fase final da corrida.
O regresso da Ford às 24 Horas de Le Mans
O GT40 ajudou a tornar a Ford numa marca reconhecida e respeitada na competição automóvel. As conquistas do GT40 em Le Mans não pararam em 1966, tendo conquistado as 24 Horas de Le Mans em 1967, 1968 e 1969. Só mesmo as mudanças nos regulamentos ditaram o fim da hegemonia do GT40 no WSC.
Foi preciso esperar exatamente 50 anos sobre a vitória da Ford em Le Mans para a marca norte-americana regressar ao circuito de La Sarthe. Desta vez com um novo Ford GT, uma reinterpretação contemporânea e radical inspirada no lendário GT40.
Apresentado no início de 2016, o superdesportivo marcaria o regresso oficial da Ford a Le Mans, ainda que desta vez na categoria LMGTE Pro, impossibilitando-a de ambicionar à vitória geral discutida entre os protótipos.
Contudo, o duelo Ford-Ferrari acabaria por ser de alguma forma reeditado, já que o construtor italiano competia na mesma categoria com o 488 GTE. E mais uma vez, a Ford triunfou sobre a Ferrari, conquistando a vitória na sua classe.
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